Salve toda a negritude da Bossa Nova!

“Um ponto de exclamação no título concentra as diversas questões suscitadas pela peça-filme da Aquela Cia.: ‘Chega de Saudade!’ é, em simultâneo, uma homenagem à Bossa Nova, que propunha rompimentos com a música de fins dos anos 1950, e uma exortação para que aquele sonho de jovens brancos de classe média da Zona Sul carioca seja revisto, passados mais de 50 anos.”

E assim, debochadamente, ‘Aquela Cia. de Teatro’ se apresenta, com o texto do imenso Pedro Kosovski. Pedro é um dramaturgo que atravessa todos os limites possíveis. Não há uma receita, ou um perfil a ser traçado, quando se fala desse dramaturgo. Nada convencional, para sorte do público! Dramaturgo de obras reconhecidas por todos, quando não censurado. Sua obra “Caranguejo Overdrive” está na justiça como alvo de censura pelo Centro Cultural do Banco do Brasil. Pedro transita em universos novos, e quando chega para o espectador, todos são tomados por incredulidade diante do que se vê. É sempre assim.

Há de se dizer que Pedro é um dos maiores dramaturgos do Teatro carioca, impossível não reconhecer as peripécias escritas pelo rapaz. Tem coragem e desabafa para o novo sua mente extremamente criativa e política. Um privilégio para aqueles que têm a oportunidade de conhecer suas obras.

Em um Brasil cheio de racismo, convidar negros a representarem os ícones brancos criadores da Bossa foi de uma sagacidade incrível, principalmente diante de um dos movimentos musicais mais burgueses do Brasil, apesar da forte influência no Samba carioca e do Jazz Norte-americano. Vale assistir. O repertório não poupa a plateia de ouvir pérolas da música de incalculável grandeza. Maravilha!
Dedilhados mesclados à narrativa, salve o imenso Pedro!

O elenco ciente da importância do estilo musical na história da música popular brasileira teve cuidado na construção dos personagens, todos dotados de uma delicadeza arrebatadora.

Negros na Zona Sul? Que conte essa história o ator Zózimo Bulbul, que mesmo morador de Ipanema, tomava dura da polícia — cena corriqueira, infelizmente, não parece ter mudado muito nos últimos 60 anos!

O grupo de jovens artistas foi gentil com as personagens, isso fica visível. Banhou-se na gentileza de Stanislávski.
Vilma Melo integra o elenco, como sempre uma atriz nada ponderada, mesmo contida, monta sua personagem com rigor e magnetismo. Ela vem maravilhosa, sua maturidade artística já apresentou ao público obras lindíssimas. Flávio Bauraqui, ao lado da diva, também doa seu talento e abençoa a obra. Matheus Macena foi coroado e interpreta João Gilberto, bingo! Beleza cênica inquestionável. As expressões de João Gilberto perfeitamente colocadas. A voz com uso de pausas, também traz ao personagem as características marcantes do grande artista.

Nara Leão, princesa da Bossa Nova, é interpretada por uma artista trans, Ona Silva. Não dá para acreditar! Tudo metodicamente pensado e transformado.

A direção de Marco André Nunes é sensacional. Fotos da galera da Bossa passeiam no audiovisual retratando toda essa geração musical. Quando surpreendem com o grupo de artistas negros cantando “Desafinado”, para que a alma se eleve ao nível máximo.
Essa sincronia é possível porque houve roteiro, direção e dramaturgia potentes.
Figurinos bem elaborados e pesquisas cuidadosas. Na fica técnica: uma coleção de estrelas.
“Aquela Cia. de Teatro” não sabe fazer nada mais ou menos, todos os trabalhos têm um motivo, um grito, algo que sangra, que emudece, que surpreende. Cumprem bem o papel de fazedores de Teatro.

Essa obra é diferenciada e provocadora. Pode irritar profundamente os preconceituosos e tirar a sociedade da zona de conforto! Para todas as pessoas bem integradas à sociedade plural em que vivem, que sabem conviver e respeitar as diferenças, essa obra pouco convencional, muito bem arquitetada e magistralmente orquestrada, é um presente!
Um trabalho audacioso, que traz um pouco mais da história, da personalidade e das características cada personagem. Um trabalho audiovisual bem feito, elegante e bom de assistir, tão deliciosamente musicado, que o tempo voa. Imperdível!

Ficou curioso? Quer assistir? Acompanhe o canal Aquela Cia. de Teatro na plataforma https://www.youtube.com/c/AquelaCia e o Instagram https://www.instagram.com/aquela_cia/?hl=pt-br7 a obra em breve voltará a estar disponibilizada nas redes.

FICHA TÉCNICA
Eletrobras Furnas apresenta “Chega de Saudade!”
Direção: Marco André Nunes
Texto: Pedro Kosovski
Elenco: Andrea Bak, Flávio Bauraqui, Hugo Germano, Matheus Macena, Muato, Ona Silva e Vilma Melo
Direção de fotografia: Guilherme Tostes
Direção musical: Felipe Storino
Edição: Acácia Lima
Produção executiva: Cuca Dias e Júlia Andrade
Produção: Corpo Rastreado