O cronista dos trópicos

Início de ano, temperaturas extremas planeta afora, calor de esturricar a alegria no Rio de Janeiro. O desejo é parar o tempo, esquecer que a cada canícula vêm temporais e desastres nestes tristes trópicos. Nesta estação abafada, o alívio refrescante chega na biografia de um criador de histórias cariocas, Gilberto Braga, o Balzac da Globo (Intrínseca, R$ 122), pesquisa iniciada pelo saudoso Artur Xexéo e concluída por Maurício Stycer.

Autor de telenovelas e minisséries acompanhadas com fervor por espectadores de todo o país, Gilberto Braga não era nascido, mas foi criado na Zona Sul do Rio de Janeiro, o rincão mais cobiçado de uma cidade.  A antiga capital da Colônia, Reino, Império e República manteve o status de epicentro cultural do Brasil, ao menos para os que nela vivem. Essa arrogância carioca, característica de sua população, era captada com fina ironia por Braga, que teve diversas ocupações antes de se firmar como escritor. Fez crítica teatral, foi repórter e professor de francês antes de dar vida a personagens exuberantes que povoam o imaginário brasileiro, inspirados em situações reais. Definia-se como apolítico, mas com Vale tudo, levou a crise econômica e corrupção para a teledramaturgia. As recordações da juventude na ditadura estão alinhadas em Anos Rebeldes, transmitida pela TV Globo durante o processo que culminou com um impeachment presidencial.

O subtítulo do livro se refere à crônica do cotidiano de ricos e da classe média que Gilberto Braga retratou em seus trabalhos televisivos. Apresentou-se uma vez a um francês como escritor de folhetins, desmerecendo seu próprio crédito como autor. O domínio do folhetim era comprovado pelo sucesso de público experimentado a cada nova peça, com raríssimas exceções, entre elas a última novela, Babilônia, de baixa audiência. Sua história de família era marcada por tragédias: o avô, em surto psicótico, matou a avó e cumpriu pena perpétua no Manicômio Judicial; a mãe, depressiva, suicidou-se. Parte desses dramas foram levados para o trabalho autoral, notabilizado pela fidelidade em retratar figuras da alta sociedade, que conheceu quando dava aulas particulares de francês em endereços aristocráticos da orla carioca. Mulheres fúteis, cortesãs, empresariado vilanesco e anti-heróis sem um pingo de caráter se sobressaíam em tramas ousadas que privilegiavam a vitória do bem contra o mal, mas permitiam a famosa fuga de um pilantra interpretado por Reginaldo Faria, dando uma ‘banana’ para a costa brasileira na janela do avião que o leva para fora do país. Era uma das cenas finais de Vale tudo, um marco na TV brasileira ao mostrar que a adaptação moral de personagens nem sempre de caráter firme. A novela trouxe ainda Beatriz Segall na pele da arquivilã Odette Roitman, dona de uma empresa de aviação, sem qualquer empatia pelos pobres e sempre pronta a menosprezar os hábitos ‘tupiniquins’. A seu lado brilhava Glória Pires, uma jovem que vende a casa da mãe para financiar sua ascensão social, casando-se por interesse com um herdeiro bobalhão, mantendo um caso extraconjugal com um garoto de programas.

O jornalista Artur Xexéo gravou diversas entrevistas com Gilberto Braga, em 2019. Colhia depoimentos de outras pessoas para compor o livro, quando, em 2021, morreu repentinamente de parada cardiorrespiratória. Gilberto Braga pediu a Maurício Stycer que continuasse o trabalho de Xexéo.  Exatamente quatro meses depois da morte de Artur Xexéo, Gilberto falecia de infecção generalizada e abrupta, aos 76 anos. Percorrendo os caminhos indicados por Xexéo em suas anotações, Stycer homenageia o veterano colega na apresentação do livro, do qual faz questão de se considerar coautor. Apenas um capítulo já estava concluído por Xexéo, o que narra a disputa de Gilberto Braga pelo posto de principal crítico de teatro do jornal O Globo, Martim Gonçalves, nos anos 1970. Um duelo travado lentamente e vencido, anos mais tarde, por Gilberto, que usou da mesma tenacidade e elegância de suas personagens. Do livro ainda se sobressai o Rio de Janeiro, cenário onde Braga emoldurou tantas histórias, sem esconder o crescimento da violência e a cristalização da desigualdade social, com o afastamento cada vez maior entre ricos e ‘os outros’.