Obra-prima russa ‘O Dragão’

Para falar de um espetáculo criado pela Cia. de Teatro Ensaio Aberto é preciso coragem, levando-se em consideração todos os trabalhos advindos dela construídos mediante a estudos profundos. Na verdade, são verdadeiras pérolas do Teatro brasileiro, fontes de estudo para o futuro de todos os profissionais do segmento.

Profissionais minuciosos, que procuram nos registros históricos dados preciosos para suas ricas montagens. Durante a pandemia o grandioso Luiz Lobo, diretor da companhia teatral, levou às plataformas oficinas riquíssimas e empoderadas. Sorte para aqueles que tiveram à oportunidade de participar.

A companhia volta ao presencial com a obra-prima “O Dragão” do dramaturgo e escritor russo Eugene Schwartz.

“Há 400 anos, uma cidade é dominada e enganada por um dragão de três cabeças. Um conto de fadas para adultos, uma fábula que narra a história de um povo, que não conhece a verdadeira liberdade. A montagem da Companhia Ensaio Aberto leva à cena o encantamento e a imaginação dos contos fantásticos. As cores de Chagall dão o tom da cenografia e a iluminação cênica. A presença do coro operário reafirma a tradição do teatro épico e a potência histórica da luta do povo, que remete à realidade dos tempos atuais”.

O espetáculo não começa no terceiro sinal, mas quando entramos no Armazém da Utopia, localizado no Cais do Porto. O Cais do Porto hoje, é sinônimo de arte, uma verdadeira galeria a céu aberto, onde artistas deixaram suas artes registradas e grafitadas nos muros, estendendo-se por quilômetros, o maior painel de artes gráficas do mundo, dinheiro público bem aplicado!

O Armazém da Utopia foi aprovado por unanimidade no dia 14 de outubro, na Alerj, o projeto de lei que o declarou como patrimônio imaterial cultural do Estado do Rio de Janeiro, merecidamente! Isso já mostra a soberania da Cia Ensaio Aberto, o que é justo, diante da cientificidade que carrega seus fundadores.

Quando se entra no imenso galpão do Armazém da Utopia, encontra-se uma iluminação diferenciada, dragões e músicas já envolvem os espectadores, no clima épico do formidável Luiz Lobo.

Ao ouvir o sinal, a plateia se posiciona tomada pela ansiedade pelo que virá. A primeira cena é estupenda, artistas, cenário, trilha sonora e figurinos já mostram no primeiro ato, que não se trata de uma obra rasa, mas de uma obra magnânima!

A luz se ascende e tudo começa, o elenco, belissimamente, vestido. Os figurinistas Beth Filipecki e Renaldo Machado são impecáveis. Não há arranhões! Todos os personagens carregam em seus corpos a beleza das indumentárias. Existe um casamento fiel entre a dramaturgia e os figurinistas, independentemente do tempo em que o texto foi escrito.

Eugene apresenta um conto de fadas para adultos e os figurinistas entenderam a dinâmica textual, pois suas criações foram muito bem boladas, com cores, que não cansam a vista. Embora, o conceito utilizado seja do artista Chagall, as cores são mais amenas. Aliás, a escolha do artista foi sensacional, uma excelente sacada, levando em consideração seu surrealismo.

A gata Mimi, uma das protagonistas da dramaturgia, vem bem desenhada, bem à vontade em seus movimentos com um figurino lúdico e funcional. O vestido da personagem Elza é um desbunde, tudo muito lindo!

O dramaturgo Luiz Fernando Lobo atua no espetáculo como o Dragão e veste uma túnica de prestígio, embora esse dragão não valha nada, nem um centavo de réis! Os tecelões, o povo, a tropa de choque e os lanceiros não estão menos atrativos, mesmo trajando indumentárias em cores mais fechadas, com um ou outro toque de cor mais vibrante. As botas do personagem Lancelot são incrivelmente elaboradas para o personagem, uma sagacidade desses artistas figurinistas, que surpreendem quando não se limitam nos detalhes. Olhares precisos e incrivelmente pitorescos. Os figurinos são um show à parte! O personagem Burgomestre apresenta uma indumentária luxuosa, parece saído de um livro encantado. Tudo Belíssimo!

Caracterizações bem-vindas, dos cabelos às maquiagens, tudo muito bem cuidado, uma obra imensa, que esbanja detalhes importantíssimos, que não passam desapercebidos ao olhar crítico. A maquiagem de Burgomestre é um desses caprichos, qualidade notável!

Os objetos de cenas são bem utilizados e garantem ao espetáculo um andamento perfeito. A pata do dragão é um desses objetos, que chama a atenção e diverte a todos os presentes, isso é inegável. Outro belo objeto cênico é a adaga da personagem Elsa, uma arma belamente talhada da Idade Média. Esplêndida composição. Os lenços das personagens tecelãs, assim como os chapéus, que compõem os figurinos dos artistas da carroça, são uma das cerejas do bolo da estética visual.

A carroça de Brecht, da eterna “Mãe Coragem”, é de uma preciosidade ímpar, neste momento sombrio em que o Brasil atravessa. Filosofias e ideais brechtianas sempre presentes nessa companhia, o olhar para os não abastados da sociedade sempre presente em seus espetáculos. Existem elementos surpresas que dão ainda mais beleza à obra. O Fogo que faz rir, o fogo que faz encantar, que ilumina e faz com que todos sintam as fábulas ao vivo. O fogo do dragão é hilário. Um toque de ilusionismo bem adaptado.

O próprio dragão, que passa por nossas cabeças, é fantástico, o Realismo Fantástico (Como o próprio nome indica, o Realismo Fantástico combina uma visão realista do mundo com elementos mágicos, que são inseridos em cenários cotidianos) está presente e muito bem desenhado, embora seja um conto, há de se perceber que a estória não é muito diferente da história que infelizmente o mundo vive. O autoritarismo do dragão parece ser algo em voga no Brasil.

O texto de Eugene Schawartz, também vanguardista de guerra, foi construído em um dos momentos mais difíceis da humanidade, mas mesmo assim, não deixou de alimentar sonhos, o mesmo sonho que hoje acompanha a maioria: Derrubar o ditador!

“Em 1939, Hitler e Stalin assinam o pacto germano-soviético, um pacto de não agressão. Era ‘meia-noite no século’. Às vésperas da Segunda Guerra, em 1941, o dramaturgo e escritor russo Eugène Schwartz começa a escrever ‘O Dragão’. Stalingrado é sitiada pelos alemães e o destino do mundo está sendo disputado nos vastos espaços da União Soviética. Forçado ao exílio, Schwartz só retoma a escrita da peça em 1943. No final de 1944, a peça foi encenada em Moscou e suspensa após a primeira apresentação. A representação só foi retomada em 1964, Eugène Schwartz, o dramaturgo, morreu em 1958 e não teve a oportunidade de assistir a sua obra no palco”. ‘O Dragão’ é encenado no mundo inteiro. É uma peça que apesar de escrita em 1943, traz de volta as conquistas do Teatro Russo-soviético dos anos 20 e traz a mágica de volta ao Teatro. “Um texto profundamente político, mas onde a fantasia tem um papel fundamental”, destaca o diretor da companhia, Luiz Fernando Lobo.

O cenário é imenso, um Lego gigante, que os artistas montam e desmontam em cena, na verdade, encaixam e desencaixam. São bases para que subam e desçam, entrem e saiam, tudo com muita propriedade. As cores, em tons pastéis, inteligentemente bem pensadas. São quase duas horas de espetáculos, e devido a esses cuidados, o tempo passa desapercebido.

Felipe Radicetti, diretor musical, não comete tropeços em seus apontamentos, tudo muito erudito. Parece ter escolhido tudo a dedo.

Os trabalhadores, como a companhia gosta de apresentar, se apresentam com legitimidade em seus ofícios, uma força descomunal.

Luiz Fernando Lobo assume o dragão, quando não está voando sobre nossas cabeças. Um dragão debochado, insolente, com uma linguagem divertida que alcança a plateia. Ele se remete aos espectadores sem medir palavras, um teatro épico e dinâmico. É possível acreditar que o texto é modificado para o espetáculo, mas não, Luiz Lobo mergulhou com graça, defendendo seu personagem preciosamente.

Lancelot, interpretado pelo ator Leonardo Hinckel, se apresenta com força e entrega. Isso é visível, principalmente, quando está dialogando com Tuca Moraes, a gata Mimi, que o ajuda a livrar a cidade da tirania do Dragão. — Fica mais por aqui MIMI, estamos precisando de você! Tuca tem uma atuação de excelência, seus movimentos gatunos precisos ludibriam todo tempo. Atuação perspicaz, a plateia acreditaria ser um bichano de verdade, não fosse o tamanho humano do gato. Graças a Paulo Mazzoni, que não polpou riquezas de detalhes em cada movimento em cena. O diretor de movimento parece ter posto pilhas em todos no palco. Tudo simetricamente elaborado.

Lancelot e Mimi numa conversa inicial são acompanhados por um rádio, que ao fundo tem discursos políticos “dos estrumes da humanidade”: Stalin, Moussoline e Hitler, a ponte que leva o espectador à realidade dos tempos atuais.

Claudio Serra é um ator preparado, com conhecimento aprofundado. Ele é preciso em suas expressões faciais e corporais, por adaptar seu personagem com um teatro físico arrebatador, ele vai além da voz, usa toda a sua capacidade corporal no palco. Burgomestre reverencia o teatro popular, deixando de lado o burguês. Manifestações como do grotesco — buscar o feio para revelar faces ocultas do humano, trazendo o capitalismo como um mal.

Claudio Serra usa todas as ferramentas possíveis para construir um Burgomestre envolvente e inteligente, mesmo com um texto imenso. E mesmo com conhecimento no Teatro Contemporâneo, ainda assim, defende com graça o Teatro Tradicional, sobretudo o Francês. Uma busca do artista, que vai além do que se pode imaginar.

Bruno Peixoto, Natália Gadiolli, Rossana Russia e Igor Federici dão a plateia um momento épico, além de muito bom gosto e extrema emoção, arrepiam as estruturas daqueles que entendem um pouco de Teatro, pois apresentam “a carroça da Mãe Coragem” de Brecht. O dramaturgo, que volta ao Teatro com elegância no pós-guerra e em um espetáculo, apresentou uma vendedora ambulante e seus filhos sobrevivendo à guerra. Há de se chorar nessa hora.

Brecht, referência do Teatro do Absurdo, é a maior ponte com a realidade, pois atravessou o momento sombrio do Fascismo, nada muito diferente do que os brasileiros vivenciam hoje. Um verdadeiro horror! Tão terrível quanto um autoritário querer impor suas ideias de morte ao povo, principalmente ao negar uma vacina que protege contra um vírus mortal, que por quase dois anos levou mais de 600 mil patriotas e devastou famílias. Um ditador, que riu da falta de ar dos que estavam prestes a morre sem oxigênio. Um dragão assustador, que leva um país inteiro ao declínio, virar chacota mundial. A Cia. de Teatro Ensaio Aberto tem seus pilares bem fundamentados por esse dramaturgo, e os brasileiros também deveriam ter.

Nesse momento, os atores narram suas falas ao mesmo tempo, sem duelos, mas visivelmente bem ensaiados. Notável, uma façanha pouco vista nos palcos italianos, a carroça atravessa o palco do Armazém e nossos espíritos!

A atriz Rossana Russia, tecelã, canta como um rouxinol no corpo de uma Fênix, a belíssima canção “Noite Escura” do filme “Dois soldados”, de Leonid Lukov, filmado durante a evacuação em 1943. A cena em que o protagonista Mark Bernes canta para seus companheiros soldados em um esconderijo subterrâneo, precisava dessa canção. Rossana faz a interpretação ao vivo, que raríssimas vezes pode ser contemplada. Sem palavras para a prodigiosa atuação, sem contar as mímicas com os elementos mágicos. Um verdadeiro baluarte!

Isabela Coimbra e Tayara Maciel são as amigas da protagonista Elsa, elas mais parecem duas bonecas. Luiza Moraes, a virgem oferecida ao dragão como oferenda, conta com uma estética visual, que complementa a beleza do espetáculo, tal qual uma das flores de Monet.

E como teatro não se faz sozinho, juntos os artistas levam o público às diversas nuances do espetáculo, uma delas é como o povo se torna uma marionete nas mãos dos corruptos, como são castigados quando o Sistema não é mais engolido e aceito por eles. Trazem a importância da ideologia, da reconstrução de um povo destruído, da necessidade de seguir em frente, e sobram lágrimas para aqueles que entendem a mensagem dessas estrelas, que caíram sobre o Cais do Porto, repletos de brilho e intensidade.

Impossível assistir somente uma vez, fica difícil assistir a outros espetáculos esperando menos, pois o brasileiro parece ter arte nas veias e quando o fomento chega, sabe realizar com demasiada significância obras dignas, isso é fato. A Cia. corre com afinco para trazer obras como essa e se utiliza das leis de fomento à Cultura, que dão à sociedade maravilhas de valor incalculável. “O Dragão” é uma obra-prima, que orgulha os brasileiros, uma obra a qual, sem sombra de dúvidas, colocariam europeus como formigas em filas gigantes, sedentos por beber das águas límpidas desse rio de cultura, que impacta a alma.

O DRAGÃO

Curta temporada até 6/12 de dezembro

Sextas, sábados, domingos e segundas, às 20h

Armazém da Utopia

Endereço: Armazém 6, Cais do Porto

www.armazemdautopia.com.br

Informações: 21. 2516-4893 / 98909-2402 (WhatsApp)

De VLT: Parada Utopia/ Aqua Rio.

Abertura da casa 1h antes do início do espetáculo

Classificação: 12 anos

Capacidade: 256 lugares

Duração: 105 minutos

Ingressos gratuitos disponíveis pela plataforma Sympla: www.sympla.com.br/armazemdautopia

Obs.:

O Armazém da Utopia conta com rampas para acesso e banheiro adaptado para cadeirantes, propiciando condições de acessibilidade para idosos, pessoas com deficiência e com mobilidade reduzida. Também teremos intérprete de libras em uma das apresentações para pessoas com deficiência auditiva e disponibilizaremos folders em braille.

FICHA TÉCNICA

Trabalhadores do Espetáculo O Dragão

Autor – Eugène Schwartz

Tradução – Maria Julieta Drummond de Andrade

Direção – Luiz Fernando Lobo

Direção de Produção – Tuca Moraes

Cenografia e Espaço Cênico – J.C. Serron

IIluminação – Cesar de Ramires

Figurino – Beth Filipecki e Renaldo Machado

Direção Musical – Felipe Radicetti

Dragão Alado e Máscara Gato – Eduardo Andrade/Arte5

Coordenação de Produção Executiva – Cida De Souza

Assistente de Direção – Kailani Vinicio

Programação Visual – Tatiana Rodrigues e Marcos Apóstolo

Preparação Corporal de Solo e Aéreo – Paulo Mazzoni

Preparação Corporal – Juliana Medella

Efeito Aéreo Dragão – Cláudio Baltar

Rigger – Carlos Eduardo Índio

Mágicas – Mágico Janjão

Aulas de Arame – Cinthia Nunes

Produção Executiva – Job Center

Assistentes de Produção – Ingra Oliveira E Job Center

Produção de Set – Isis Patacho e Job Center

Operação de Som – Milena Fernandes, Rafael A. Soares e Alumiando Produções

Operação de Luz – Rafael França e Alumiando Produções

Coordenação Ciência do Novo Público e Gestão De Redes Sociais – Agnes De Freitas

Ciência do Novo Público – Gilberto Miranda, Kauane Ribeiro E Milena Fernandes

Elenco

Luiz Fernando Lobo – Dragão

Leonardo Hinckel – Lancelot

Tuca Moraes – Gata Mimi

Gilberto Miranda – Carlos Magno

Claudio Serra – Burgomestre

Luiza Moraes – Elsa Aruam

Galileu – Henrique Bruno Peixoto – tecelão, coro operário, tropa de choque e lanceiro Berg Farias – violinista, coro operário, cuspidor de fogo, tropa de choque e lanceiro

Farley Matos – ferreiro, coro operário, tropa de choque e lanceiro

Felipe de Gois – chapeleiro, coro operário, tropa de choque e lanceiro

Grégori Eckert – coro operário, tropa de choque e lanceiro

Igor Federici – jardineiro, tecelão, coro operário, tropa de choque e lanceiro

Isabela Coimbra – amiga Elsa, coro operário, tropa de choque e lanceiro

Kauane Ribeiro – coro operário, cuspidora de fogo, tropa de choque e lanceiro

Mateus Pitanga – sentinela trompetista, coro operário, tropa de choque e lanceiro

Natália Gadiolli – tecelã, coro operário, tropa de choque e lanceiro

Natássia Vello – coro operário, tropa de choque e lanceiro

Nelson Reis – coro operário, tropa de choque e lanceiro

Rossana Russia – tecelã cantora, coro operário e tropa de choque

Tayara Maciel – amiga Elsa e coro operário

Secretaria Especial da Cultura, Ministério do Turismo e Governo Federal

Companhia Ensaio Aberto – Nova Criação – Termo de Fomento nº 887488/2019