Pra que multiplicar se podemos dividir?

Na última coluna, comentei que a música mecânica, tocada por caixinhas de música, realejos e pianolas, programados por cartões perfurados ou cilindros de metal com alto-relevo, são máquinas que se baseiam no fato da música ser formada por padrões. Sejam eles musicais, culturais ou mecânicos – os clichês.

Esse termo pode ter a conotação pejorativa de “lugar comum”, algo feito sem esmero, apelativo. Mas, para os instrumentistas, significa que se pode tocar diversas músicas, numa mesma vida, sem ter que começar do zero a cada nova peça.

É como o acúmulo de experiências, passado de geração em geração, que permite que se tenha certeza de como as coisas funcionam para, sobre essas bases, poder dar saltos qualitativos e avançar. Sem os retrabalhos, que são tão contraproducentes.

É interessante e perturbador perceber o quanto carregamos de programação cultural, química, física e biológica. Desde o DNA, que não escrevemos, até este modo de perpetuar conhecimento, por meio de livros ou de linhas de programação. E quanto nosso inconsciente é presente em nossos pensamentos e ações…

O avanço tecnológico, tão veloz, causa hiatos na compreensão. Muitas vezes, não se sabe como se chegou a determinadas práticas e o choque entre gerações, que usaram muito algumas delas, com outras, que as desconhecem completamente, além de curioso, pode virar dilema e, assim, motes artísticos.

No filme de 2011, “A invenção de Hugo Cabret”, a história se desenrola em torno de um boneco autômato, programado para desenhar. Os espectadores, apesar de íntimos dos “Apps”, viam a máquina, precursora mecânica da programação eletrônica e digital que, hoje, nos cerca, como ficção.

A rotina do uso das tecnologias, somadas aos carros, trens e aviões do cotidiano, banaliza, em nossa mente, o entendimento da realidade que vivemos. Só quando comparada a tempos passados, às vezes mais longínquos, às vezes, mais próximos, consegue se ver as enormes transformações.

Fazendo uso dos referidos padrões, Bobby McFerrin, lançou em 1988, a canção “Don’t worry be happy”. Além de usar clichês rítmicos, melódicos e harmônicos em sua composição, também aproveitou os pequenos ciclos, de quatro compassos quaternários e resolveu gravá-la sozinho e “à Capella”.

Naquela época, já era possível um mesmo músico gravar vários instrumentos, em canais independentes, sobrepondo-os uns aos outros e conseguindo um resultado sonoro de banda ou orquestra – o famoso “overdub”.

Como exemplo, no ano anterior, 1987, Paul McCartney havia lançado um compacto, com a música “Once upon a long ago”, que foi gravada, praticamente, toda por ele. Que compôs, concebeu arranjo e tocou a maioria dos instrumentos: bateria, baixo, guitarra, piano…

Um outro bom exemplo, este já bem mais recente, é do músico Christopher Bill, que fez uma versão a várias vozes de trombone, da música “Happy” de Pharrell Williams. No vídeo, podemos vê-lo e ouvi-lo executando enquanto gravava os loops.

Já a expressão “à Capella”, quer dizer que o único instrumento usado é a voz. E isso nos remete a um coral, onde todos os componentes estão cantando. No mínimo, fazendo um fundo melódico, com linhas mais passivas que fazem uma cama, ou uma cortina para a melodia principal.

Muitos grupos vocais, principalmente, com influência e experiência Gospel, como o “Take 6”, acabaram se especializando em arranjos desse tipo. Outros, usam “à Capella” em partes específicas de uma música, ou como um dos tipos de arranjo vocal, entre outros, que executam.

No caso, Bobby McFerrin fez vozes e instrumentos com a boca: três linhas de guitarra, para formar acordes de três notas, baixo, percussão, assovio, coro, contracanto, cacos e efeitos, além, é claro, da voz principal. Ouça com atenção! É impressionante até hoje!

Hoje, vários grupos vocais têm integrantes que imitam o som de instrumentos, como o “BR 06”. E o Brasil, apesar de não ter uma cultura de educação musical forte, pública, para idade escolar, tem um número expressivo de grupos vocais e, até, reconhecidos fora do país. Este assunto merece uma outra coluna.

Outra coisa que chama atenção na carreira de McFerrin, é a maneira que encontrou de fazer suas apresentações ao vivo, já que, na época, não existiam os equipamentos de “loop”, capazes de armazenar, repetir e tocar, de forma instantânea, diversas camadas de gravação simultâneas.

Na internet existem muitos vídeos que mostram como sua relação com o público se transformou. Sempre muito carismático, estimulando a participação de seus espectadores, aos poucos, deixou a posição de destaque, de centro do espetáculo e colocou “todo o público no palco”. A interação é arrebatadora…

Com apenas um microfone, entra em cena e faz os espectadores participarem do show. Na Ave Maria de Gounod, melodia feita quase dois séculos depois, sobre o Preludio nº1 de Bach. Bobby, sozinho, canta o acompanhamento, que é o prelúdio e o público em uníssono, canta o tema… Incrível!

Um outro vídeo, mostra sua participação no “World Science Festival – 2009 – Neurons and notes”, uma convenção de neurociência, onde ele exemplifica o assunto sobre expectativas, demonstrando a força da escala Pentatônica, com a ajuda da plateia.

Por essa maneira incomum de pensar, fazer e compartilhar sua música, considero esse cara um gênio. Entendo que não é possível evoluir sem a compreensão de que é preciso participantes e, não, consumidores.

Trazê-los para perto, convidá-los a vivenciar, formar músicos e, também, ouvintes, é a forma mais simples e humana, de escapar do abismo. Como disse Vinicius de Moraes: “Pra que multiplicar se podemos dividir?” Rememos juntos!

Até a próxima!