Talvez se tivéssemos um povo mais educado e frequente nas salas teatrais, o Brasil tomaria uma direção mais proporcional à grandeza que tem e não ficasse nessa pequenez que o desmonta.
O espetáculo “A vida não é um Musical” chama a atenção pela dramaturgia do jovem antenado e nada alienado Leandro Muniz ao que acontece no Brasil, governado por uma política “desgraçada”, que parece não mudar. Uma luta constante da sociedade para tentar trazer benefícios e assegurar minimamente os direitos constitucionais a que todos têm direito.
Uma excelente sacada, satirizada, que além de trazer muitas análises, é pura diversão. Que delícia de texto! Cheio de sagacidade e desdobramentos perspicazes. Claro que não podemos dar spoiler, mas o final não é tão fantasioso como os desenhos, o que gera a reflexão. A eterna missão do Teatro, cumprida. Além da frase: “O que o político tem mais que você?” Ah! Se os brasileiros acordassem para essa realidade, certamente não estariam onde estão, principalmente compreendendo sua força e a potência que são!
“O texto fala de um mundo utópico construído separadamente da cidade grande: o Vale Disney. Lá, nesse pequeno vilarejo, as famílias vivem felizes e em harmonia, longe da violência. Plantam o que comem, não têm contato com o mundo externo, se amam, cantam o tempo todo, como nos desenhos da Disney. Detalhe, o elenco é extremamente afinado e preciso quando dança. No entanto, quando uma das personagens entra em contato com a cidade grande começam os choques de realidade. São lançadas, então, críticas em formas de piadas, atualizadas para o contexto político atual, com os personagens deste segmento em alta nas mídias e jornais.” (Sinopse)
Como não mencionar a beleza da atuação da atriz Daniela Fontan? Ela simplesmente arrebata! Em nenhum momento deixa a peteca cair, sai do Vale Encantado uma princesa para duelar com um político corrupto. Com expressões corporais desse mundo de conto de fadas, risível até o final! Excelente performance! Além da voz, incontestavelmente perfeita! Daniela vai além do que qualquer espectador espera, imensa, ela traz comicidade na medida!
Tauã Delmiro é outro artista que não para, sempre nos palcos a mostrar sua competência, apresenta-se com legitimidade em seu ofício, sempre criativo e dono de expressões faciais fantásticas, que fazem a plateia morrer de rir. Apresenta-se como o príncipe traído, e não para de cantar um segundo, divertido, dinâmico, ele ocupa o palco. Tira peruca, torna-se o homossexual, o artista dá vida a peça, com toda sua expressividade.
Vitor Maia é um ator sensacional e encarna o político corrupto. Vitor é do Teatro, nasceu para o Teatro e está no lugar certo.
Dryson assume um dos protagonistas, com belíssima voz e presença de palco. Abraça seu personagem carismático e de boa índole, o faz muito bem.
O que mais chama atenção no espetáculo é o enredo, que justifica o sucesso de crítica. A sátira é bem embasada, tudo muito bem construído. Sair do Vale Encantado para entrar na realidade é de uma expertise singular. Ver o Saci reivindicando protagonismo, em um Brasil racista e preconceituoso, pode ser até risível, todos riem, mas se pararmos para analisar, fica ali escrachada (e denunciada) uma dura e brutal realidade. Hoje, há o protagonismo negro, mas normalmente em um espetáculo de estética negra, quase sempre longe dos grandes aportes financeiros, os apoios e patrocínios dificilmente chegam para uma ficha técnica negra.
Uma princesa com toda expressão corporal de um mundo de “faz de conta” discute assuntos sérios, quando levada à realidade, ao se deparar com os problemas sociais e o atraso. O texto leva o espectador muito além do que se vê no palco, apresenta o público à sociedade a qual pertence, onde há muito desrespeito e os direitos básicos sequer são garantidos. De Tiriricas às atrizes dos filmes pornôs todos se candidatam a algum cargo nas eleições. E daí percebe-se como o dramaturgo soube jogar, por meio da sátira ele mostra a podridão que cerca o Brasil!
“A Vida não é um Musical — O Musical” tem uma linguagem acessível a todos e é explícita, não amena, não inibe a opinião política dos próprios artistas, que se expressam. Eles estão trabalhando, vivendo de sua arte, diferentemente do que pintam no Planalto Central. Porque os cachês não pagam somente as duas horas de apresentações aos finais de semana, mas horas e horas de ensaios desgastantes, para trazerem ao público obras que fazem refletir, antes mesmo de fazer rir.
O espetáculo tem um cenário inteligente com aplicação da luz certa. A iluminação dá força ao espetáculo, que fica divertido, a luz abraça bem os artistas. Os figurinos também estão excelentes. A maioria colorida, como no “mundo do faz de conta”. O que também chama a atenção e está bem definido pelo dramaturgo são as mudanças da sociedade atual, tanto nas questões da família contemporânea, quanto nas questões sociais, como a liberdade quanto à orientação sexual e o respeito às escolhas de cada indivíduo, tudo muito bem concebido por Leandro Muniz.
Entre uma verdade e outra, uma espezinhada, ou uma sátira, que faz rir, o texto traduz a realidade. As músicas criadas não são inoportunas, muito ao contrário, enriquecem as cenas. Entre princesas e bichinhos, o espetáculo acontece. Entre um riso e outro, assistimos à vergonha do que realmente somos! O espetáculo entende bem mais de Brasil que muitos políticos que o governam! Uma salva de palmas para a coragem dos envolvidos e para a concepção artística do idealizador!
Que continuem atuando com a mesma expertise, com a intenção de mudar um pouco o rumo da história e contribuir um futuro melhor. Confesso que ri muito, ri de dentro para fora, ri de me esbaldar, mas refleti o quanto ainda é preciso mudar para que as melhorias afetem positivamente toda sociedade. Certamente Molière entenderia bem mais dessa obra, que muitos brasileiros, que insistem em viver no “mundo de faz de conta”, ou olhando para o próprio umbigo.
A VIDA NÃO É UM MUSICAL – O MUSICAL
Temporada até 1/10 (Últimas apresentações!)
Sextas e sábados, às 20h
Teatro XP Investimentos
Jockey Club Brasileiro – avenida Bartolomeu Mitre, 1110, Leblon
Duração 105 min
Gênero Comédia Musical
Classificação 16 anos
Lotação 366 lugares
Ingressos R$ 80 e R$ 40 (meia)
FICHA TÉCNICA
Autor Leandro Muniz
Direção João Fonseca e Leandro Muniz
Músicas originais Fabiano Krieger
Direção Musical Fabiano Krieger e Gustavo Salgado
Direção de Movimentos e coreografias Carol Pires
Figurino Carol Lobato
Cenário Nello Marrese
Iluminação Paulo Denizot
Design de som Rossini Maltoni
Design Gráfico Pablito Kucarz
Fotos Carol Pires
Visagismo Diego Nardes
Assessoria de imprensa Alessandra Costa
Direção de Produção Renan Fidalgo – RG Cultural
Produção Executiva Gabrielle Novello – RG Cultural
Realização Quase Companhia
Idealização Leandro Muniz
Produção RG Cultural
Elenco Daniela Fontan, Draysson Menezes, Ester Dias, Fernanda Gabriela, Flora Menezes, Janamô, Ingrid Gaigher, Lucas da Purificação, Nando Brandão, Victor Maia, Vinicius Teixeira, Tauã Delmiro e Udylê Procópio