Outras Marias, ou todas

O espetáculo Outras Marias, no Sesc Tijuca, chama atenção por sua simplicidade e consistência. A escolha do Sesc mostra a eficiência em deixar a Cultura desempenhar a sua função na sociedade. Educar!

Um texto denso, afinal trata-se de Márcia Zanelatto, que aborda com maestria as batalhas cotidianas e tem o costume de dar voz aos que necessitam. Sempre aborda temas relevantes à sociedade. Em resumo, a dramaturga segue Lima Barreto e assume a responsabilidade de trazer à tona as mazelas da humanidade. Não podia dar errado, tendo convidado Patrícia Selonk para dirigir.

Patrícia Selonk não precisa de apresentações, pois seu sobrenome deveria ser Teatro. Ela é oriunda das Artes Cênicas, luta e resiste por ela, como uma destemida leoa. Mesmo diante das dificuldades enfrentadas pelos artistas, Patrícia se acolhe nos versos de Maria Bethânia quando diz, “Sou como a haste fina, que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta”.

Talento sobra à Patrícia, que ficou eternizada em Hamlet. Uma mulher cumprindo brilhantemente a função de interpretar um dos maiores personagens de Shakespeare. E o fez com glórias! A bagagem da atriz dá a ela o necessário para cumprir sua função de diretora em “Outras Marias”, o que faz com atenção, sem pecar. E não basta dirigir as apresentações, ela está lá, encolhida em uma das cadeiras, observando atentamente a atriz protagonista e outras pupilas em palco. Observa sua criação! Seu trabalho Patrícia fica ainda mais evidente, quando olhamos para o palco bem dividido, sem espaços vazios.

O espetáculo carrega brilho, força e maturidade. Cátia Costa soube trazer movimentos interessantes ao solo. Como são várias personagens a serem apresentadas aos espectadores, cada uma delas, em momentos diferentes da história, com características fortíssimas, carrega também consigo suas personalidades, o que foi bem trabalhado pela profissional. Maria Bonita não se assemelha a Maria Mulambro, por exemplo. Elas são apresentadas com movimentos diferenciados. Eficiente trabalho dado à cada criação, estilos distintos que revelam ao público cada uma dessas mulheres do passado.

A direção musical é um ponto forte, como se não bastasse a voz da uirapuru Clara Santhana, a escolhas musicais foram bem definidas. Músicas de domínio público que encantam foram trazidas com sapiência, caiu muitíssimo bem! E isso, para Cláudia Elizeu não bastou, ela trouxe também a portuguesa Veronica Fernandes com seus acordeom e berimbau, emitindo sons, que auxiliaram a protagonista e deram mais graça e verdade a montagem.

E a sumidade Beà Ayòóla? Cá entre nós, o nome tão difícil quanto sua grandeza artística. Vamos lá, algumas vezes, a percursionista parece estar incorporada. Beá é imensa, ela não conhece a todos, não tem essa vaidade do artista, mas todos sabem quem é a fera que batuca seus instrumentos cheia de legitimidade, há entre eles afinidade, intimidade. Beá é bem cotada para trabalhos cênicos, pois apresenta seus dons e capacidade com perfeição e potência. Beá é uma mulher empoderada, é notável a capacidade que tem de fazer acontecer, em sua performance ela atrai holofotes, como que magneticamente. Uma sorte para qualquer diretor tê-la em sua ficha técnica.

Faz um tem tempo que Wanderley Gomes tem o olhar dessa coluna. Homem capacitado carrega elegância com tiras de tecido, se preciso for. E nessa obra ele não foi diferente, de uma saia temos as vestes de Maria Bonita, Maria Padilha, Maria 12 homens e segue…
Atualmente, é um dos nomes maus cotados do circuito, pois trabalha com o mesmo afinco que a senhora Chanel. Pensa, corta e executa com classe.

Iléa Ferraz trabalha com sua voz forte, convoca o regimento, ou “regimenta” mulheres, como a heroína de guerra Maria Felipa, reconhecida somente em dois mil e dezoito.

A iluminação casa harmoniosamente com a cenografia. As cores vermelhas demonstram a paixão dessas mulheres por seus amores, por sua pátria, por seu próximo e por seus ideais. Perfeito! Impossível não ter tocado cada mulher presente no espetáculo, e aos homens cabe o olhar respeitoso da força feminina, por meio desse trabalho.

Cabe a cada crítico atentar cada detalhe, a iluminação simples e delicada das partituras musicais mostram a nobreza de Daniela Sanches, que soube alternar entre a leveza e a explosão de luz, especialmente quando ilumina os instrumentos da musicista Beá.

Quando o amarelo bate em um dos seus instrumentos traz um sol belíssimo!
O vermelho, que sai do cenário por fios, evidencia toda essa linhagem poderosa de onde todas mulheres vieram.

Os objetos de cena são relicários e falam por si, de chapéus a leques, tudo dentro de um manequim. Uma caixa, que lembra muito as obras do grandioso Tovar, tudo colorido, um primor.

E o que falar de Clara?
Clara traz Maria Padilha, que abriu mão do seu amor, por inteligência e estratégia necessárias em sua época. Essa vem em uma live, brincando e dizendo em um tom de voz afirmativo, que não basta sentar no trono, tem que saber reinar!

A atriz não satisfeita brinca com Maria Bonita, mulher forte, que como tantas outras, muitas vezes abandonam suas fragilidades e expõem inquietações de forma rude, pela necessidade de assim agir.

Maria Quitéria, Marias e mais Marias representadas com legitimidade e a força da mulher deste tempo, onde as leis já não são mais as mesmas. Os códigos já não as proíbem de se manifestar, de lutar e demonstrar suas insatisfações.

Clara ao se jogar nos braços de Maria Mulambo fala com cada um das mulheres da plateia. É arrebatador, emociona.

“Por conta de sua história de vida, a pombagira protege aqueles que sofrem no relacionamento amoroso. Mas não faz amarrações: apenas orienta mulheres e homens apaixonados e ajuda a desmanchar feitiços.”

Essa personagem cobra da atriz movimentos específicos riquíssimos, de uma cultura que um dia foi a todos presenteada. A fala da personagem, muito bem acolhida por Clara, é tão forte e tão real, pode-se dizer que a montagem é uma forma de acarinhar mulheres, deixar renovar suas emoções, como fazer uma limpeza espiritual,
para que sigam ainda mais fortes. Um incentivo para ultrapassarem toda falta de sortilégio, por serem mulheres, em um Brasil onde são reconhecidas como “fraquejadas”, onde não entendem, nem temem a obstinação feminina por ocupar espaços e por tornarem-se cada vez mais donas de si mesmas!

A produção conta com o profissional Nicholas Bastos, atento a cada detalhe da execução artística, uma ponte entre o espetáculo e os espectadores.

Obrigada Clara! Obrigada Sesc Tijuca! Obrigada Patrícia! Obrigada Beá! Obrigada às mãos arteiras de Outras Marias, e obrigada a cada Maria que abriu as portas, antes de outras, para que hoje estejamos aqui, cheias de representatividade! Ah! Não poderia deixar de destacar a equipe do Sesc Tijuca, que sempre recebem com muita educação e gentileza, da bilheteria à porta dos teatros!

FICHA TÉCNICA

Atuação, idealização e pesquisa:
Clara Santhana
Texto: Márcia Zanelatto
Direção: Patrícia Selonk
Direção Musical: Cláudia Elizeu
Direção de Movimento: Cátia Costa
Percussão: Beà Ayòóla
Acordeom: Verónica Fernandes
Atriz convidada (voz em off): Iléa Ferraz
Cenografia: Dóris Rollemberg
Iluminação: Daniela Sanchez
Figurino: Wanderley Gomes
Bordadeira: Angela Santtana
Visagismo: Diego Nardes
Confecção cabeça: Eduardo Andrade
Assistente de confecção: Marcely Soares
Cabelo coloração: Pedro Amaral
Assistente de coloração: Jonathan Cruz
Arte gráfica: Raquel Alvarenga
Fotos arte: João Saidler
Fotos cena: Ariel Cavotti
Assessoria de Imprensa: Christovam de Chevalier
Produção Executiva: Nicholas Bastos
Direção de Produção: Diga Sim! Produções (Sandro Rabello)
Realização: Naine Produções Artísticas
Realização SESC/ ARRJ
Projeto contemplado no Edital SESC RJ de Cultura 2022

OUTRAS MARIAS

Temporada até 3/6
Quintas, sextas e sábados, às 19h, domingos, às 18h

Sesc Tijuca. Teatro 2
Rua Barão de Mesquita, 539, Tijuca

Ingressos grátis (PCG), R$ 7,50 (Credencial Plena), R$ 15 (meia) e R$ 30 (inteira)

Funcionamento bilheteria de terça a domingo, de 9h às 19h

Classificação 12 anos
Lotação 44 lugares
Informações: 4020-2101