Os Miseráveis (2019) denuncia graves problemas sociais sem maniqueísmo

Denuncia graves problemas sociais sem maniqueísmo, atingindo um patamar excepcional.

No livro “Razões públicas, Emoções privadas” (Ed. Rocco, 1999), o psicanalista e cinéfilo Jurandir Freire Costa, após narrar um episódio que presenciou em uma rua de Copacabana, quando populares pediam pena de morte para um garoto que teria tentado cometer um roubo, escreveu: “Como nos filmes de [William] Wyler [Tarde Demais, Chaga de Fogo, Infâmia], empurramos e continuamos empurrando os mais frágeis até onde não há retorno e, desconfio, nenhuma segunda chance provavelmente nos será dada.  Não me deixo convencer: alguma coisa está errada, muitíssimo errada no rumo que tomamos. Para que queremos riqueza e desenvolvimento se o preço pago para isso é a dureza empedernida do rancor, do desdém e do desprezo mútuo com que estamos nos habituando, com enorme rapidez e facilidade? Onde estão os quilos de sabedoria e ciência estocadas em livros, teses e paredes universitárias? O que fizemos de tudo isso? Onde está nossa memória do passado, da violência da escravidão, das perseguições assassinas do movimento militar e de tantos sonhos de um mundo melhor? Tudo isso parece evaporar-se diante de um olhar desprotegido, amedrontado, ressentido e vingativo (…) Não custa lembrar o que dizia Santo Agostinho: ‘Sem justiça, o que são os reinos senão grandes assaltos? Sem justiça, o que são os roubos senão pequenos reinos?’ Muitos não terão tempo, paciência ou interesse de ler o Bispo de Hipona. Vejam, então, os filmes de Wyler. Talvez eles nos ajudem a compreender que, passado um certo tempo, tudo é tarde demais.”

O nome deste texto resumido acima é “Tarde demais para perdoar”. Podemos parafrasear seu desfecho, dizendo que quem não tiver tempo para ler Agostinho, veja Os Miseráveis, dirigido pelo estreante em longa-metragem de ficção Ladj Ly, nascido na República do Mali, na África Ocidental, radicado na França, que residiu (ou reside ainda, não sabemos ao certo) no bairro de Montfermeil, Paris, o mesmo em que se passa a trama do romance homônimo de Victor Hugo que serve como inspiração (distante, factualmente) para o roteiro do filme em pauta.

Tal como acontece no roteiro (escrito pelo próprio diretor em parceria com Giordano Genderlini e Alexis Manenti, ator que está no filme), Ladj Ly enfrentou problemas por ter filmado uma ação policial em 2011. O episódio deu origem a um curta-metragem em 2017, base para o longa que acabou recebendo o “Prêmio do Júri” em Cannes 2019, compartilhado como o brasileiro Bacurau. Para quem não apreciou o roteiro maniqueísta e proselitista do filme brasileiro, Os Miseráveis pode causar perplexidade: os eventos que denunciam graves problemas sociais de um parcela desassistida da sociedade estão bem amarrados, mas sem maniqueísmo, evoluindo em crescente tensão capaz de deixar o espectador sem fôlego algumas vezes. O prêmio parece ter sido compartilhado mais pela importância política dos dois filmes do que por uma qualidade artística que não é comparável, já que Os Miseráveis atinge um patamar excepcional.

Além da habilidade da direção e do desenvolvimento do roteiro, chama a atenção a propriedade dos desempenhos, sendo que alguns atores têm experiência bem menor (como Djibril Zonga) do que outros, como Damien Bonnard e o já mencionado A. Manenti que, além de co-roteirista, fez o mesmo papel no curta que deu origem ao longa, assim como os dois outros atores mencionados.

Os meninos e adolescentes parecem mesmo moradores da periferia de Paris – e talvez sejam, o que não obrigatoriamente funciona nessa fórmula advinda do neo-realismo italiano (o uso de não-atores), mas neste filme, se foi o caso, funcionou muito bem. Ou são talentosos mesmo, pelo menos para encarnar os personagens que lhes foram destinados.

A situação que pode nos mobilizar especialmente, por identificação, é a do conluio da polícia (idealmente representante da Lei) com uma espécie de milícia que mantém a “ordem” sob controle naquele bairro-barril-de-pólvora. Para completar o monstrengo de muitas cabeças que tentam agir em conjunto para manter a tensão sob algum controle, seja do jeito que for, vemos, de um lado, criminosos-traficantes, e de outro, um ex-presidiário que detém o poder hierárquico por ter se transformado em uma espécie de líder religioso, um dos personagens mais ambivalentes: um cínico como vemos por aqui em falsos “pastores”? Ou realmente ele incorporou alguma noção de cuidado e responsabilidade social? É bem interessante o diálogo deste personagem com um policial que tenta manter a ação da qual participa com dois colegas dentro de um mínimo espírito ético.

No final das contas, dos tipos que procuram preservar uma certa atitude moral aos personagens menos simpáticos, seja de um “lado” da escala social, ou do “outro lado” (por exemplo, o policial transgressor/abusivo e o menino que só apronta seguidamente), todos são miseráveis.