O Escandaloso Teatro da Favela

“Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence.”

(Bertolt Brecht)

Dezoito horas e nada de um Uber aceitar em me levar ao morro do Vidigal, para assistir ao espetáculo “Eles Não Usam Black-Tie”, do projeto Nós do Morro. O projeto, que tem a missão de dar acesso à arte e à Cultura a todos por meio de oficinas de formação artística, sobrevive há trinta e cinco anos. Acompanhando o trampo dessa galera dá para entender a dificuldade que enfrentam, a própria locomoção até o espaço do projeto, que fica dentro da comunidade é dispendiosa, o ir e vir dos artistas para for da comunidade também gera custos, tudo para ser realizado pela companhia envolve esforço e muita vontade. Nada vem fácil e sem apoio ou incentivo financeiro tudo anda com muita dificuldade, fica a nítida sensação de que o Governo está se lascando para jovens e talentosos artistas, que só precisam de oportunidades!

Para chegar ao espaço fui de mototáxi, rapazes ágeis e extremamente simpáticos me conduziram ao lugar onde o espetáculo iria acontecer. Ao entrar no espaço destinados ao teatro, muitos jovens já estavam sentados, conversando, com brilho nos olhos, e isso já fez valer a pena ter ido até lá.

“Noites do Vidigal estreia no Teatro Maria Clara Machado e recebe crítica em O Globo, por Barbara Heliodora, que afirma: ‘(…) temos de tratar com o devido respeito o trabalho do Nós do Morro (…). Há, em todo o espetáculo, uma alegria, um humor, um orgulho do trabalho feito, que se comunicam brilhantemente com a plateia’. ” Isso foi publicado em 2002, e passados 20 anos nada mudou, a potência do trabalho desenvolvido pela companhia continua a mesma!

Em 2022, pode-se observar a mesma garra, a mesma vontade de fazer acontecer, a mesma alegria, o mesmo humor, o mesmo orgulho, apesar das inúmeras dificuldades enfrentadas. O teatro impera entre eles e alça voos fantásticos com esses jovens da comunidade. Bárbara Heliodora tinha razão, suas palavras reverberam e ainda fazem todo sentido.

A frente do espetáculo está o artista João Velho, que além de dirigir o espetáculo, também atua. Um artista completo, com boa entonação na voz e uma presença de palco indubitavelmente perfeita. Isso parece dar ainda mais força aos jovens presentes, afinal já é um artista reconhecido. As palavras de João atingem a todos quando questionado sobre o trabalho desenvolvido no Vidigal. O artista deixa claro que não está ali apenas para cumprir com o seu papel como um bom altruísta, mas também para seguir com o seu ofício, de estar em qualquer lugar, como todo artista deve estar e isso é fantástico! Um artista que sai da sua zona de conforto e adentra a comunidade com afinco, entendendo sua missão, agindo com humanidade e muito além disso, dando sua contribuição para um mundo melhor, numa luta por equidade. Isso quer dizer, que ninguém solta a mão de ninguém.

Nessa mesma onda, no mesmo teatro, está o artista Ernesto Picolli incentivando os jovens artistas, bravo! Enquanto naquele mesmo dia, a atriz Vilma Melo, está na comunidade da Maré. A importância desses artistas apoiando e incentivando os que chegam não tem preço! É como um vulcão, que queima e deixa esses jovens como lavas, vivas e incandescentes!

E lá também estava o Jornal Portal, por ser um espaço democrático, acolhendo a todos em nome da Cultura. Assistir a “Eles não usam Black-tie” é uma experiência fantástica. Não se perde tempo com esses jovens a todo vapor em plena flor da idade, tão famintos de arte, tão bem dirigidos por João Velho! O espetáculo apresenta dez artistas que sabem fazer Teatro, fazem rir e emocionam a plateia por intermédio do texto de Gianfrancesco Guarnieri.

Tudo parece se encaixar com perfeição, tudo combina, da cenografia ao texto, dos figurinos às performances, inclusive, fosse o espetáculo realizado em outro espaço e com incentivo, não poderia ter mudanças radicais, porque a sensação de realidade está em harmonia com o que se apresenta. O palco é intimista e isso também auxilia na montagem.

“Um movimento grevista se inicia numa empresa. Um operário está preocupado com sua namorada, que engravidou, e eles decidem se casar. Para não perder o emprego, ele resolve furar a greve, liderada por seu pai, iniciando um conflito familiar que se estende às assembleias e piquetes.” (Sinopse)

A plateia é o melhor termômetro de um espetáculo, são quase duas horas de apresentação e percebe-se todos focados nas cenas e nas performances apresentadas.

A iluminação funciona bem, nenhum desenho de luz que chame a atenção, mas dá ao espetáculo o necessário. Há de se entender que a dramaturgia conta a história de operários, não estamos falando de Broadway e o Zezinho da luz simplesmente deu um show.

Eder Ferreira assina o figurino, óbvio que se tivesse fomento o figurinista teria posto mais lenha na fogueira, mas mesmo assim, não dá para esquecer o lenço da personagem Dona Romana e o operário Bráulio em seu macacão, assim como o figurino perfeito de Drosa, sua indumentária é exatamente o que se pode esperar.

No elenco, Dona Romana, belissimamente interpretada pela jovem Laura Campos Vaz, com caras e bocas incríveis, não foi superficial em tentar levar ao palco uma personagem além do que era. Aliás, um dos momentos que não se esquece é o barulho do feijão catado em uma bacia de alumínio, o que retrata bem a quebra do silêncio em uma casa simples, após a hostilidade ter feito morada. Incrível!

O Drosa, do artista Otávio, convence e deixa vontade assisti-lo em todos os atos, suas expressões corporais muito bem empregadas para um artista alto, que sabe conduzir suas ações com cuidado. O tom de voz também é pertinente.

Gleice Uchoa encarna Terezinha, uma menina que namora o irmão do protagonista. Gleice é esplêndida, vem com uma força, nas veias comicidade em vez de sangue. Nos olhos existem ímãs que capturam os espectadores e os divertem. Incríveis cenas. O movimento do corpo também soma à comicidade que apresenta, é simplesmente apaixonante assisti-la.

Murilo Ique é o galã! Só que não para aí, Murilo tem presença de palco, se comporta bem e usa o corpo para compor o personagem. Não é raso, a tendência é o crescimento contínuo, sua voz chega bem aos ouvidos e cumpre bem o papel de galã, lindo, não sejamos hipócritas!

O elenco está também dividido também na ficha técnica, um trabalho em conjunto. Eles se desafiam e levam todos a perceberem que é possível fazer teatro de qualidade quando existem mãos talentosas dispostas a realizarem e executarem com esmero o trabalho. Trazer Nós do Morro à coluna Plateia é um orgulho para a crítica e para jornal Portal, porque não se trata somente de um projeto social e artístico dentro de uma favela, mas de um projeto que resiste e continua firme na luta e no ofício para provocar as mudanças necessárias na sociedade, e enquanto estiverem resistindo, estaremos juntos fortalecendo a cena e a arte!

Segundo o diretor, que também atua no espetáculo, com um lindo dedilhar no violão, a peça voltará em breve, então fiquem de olho e acompanhem a página do projeto no Instagram.

 

ELES NÃO USAM BLACK-TIE   

https://www.instagram.com/gruposnosdomorrooficial/

 

FICHA TÉCNICA

Texto: Gianfrancesco Guarnieri

Direção: João Velho

Elenco:

Drosa (Otávio)

Gleice Uchoa (Terezinha)

João Velho (João, irmão de Maria)

Laura Campos Braz (Dona Romana)

Luã Batista (Chiquinho)

Murilo Ique (Tião)

Nino Batista (Jesuíno e Juvêncio)

Pamela Alves (Bráulio)

Ramayana Regis (Maria)

Tatiane Melo (Dalva)

Cenografia: Nino Batista e Drosa

Figurino: Eder Ferreira

Iluminação: Zezinho da Luz

Operador de Som: Henrique Oliveira

Preparação Vocal: Isabel Schulmann

Supervisão Musical: Gabriela Geluda

Orientação Corporal: Marcia Rubin

Produção Executiva: Laura Campos Braz

Coordenação de Produção: Nino Batista

Fotos divulgação: Anael Rocha

Realização: Projeto Cria