“Vinde poetas, pintores
Engenheiros, escritores
Negociantes e médicos
Para a grande reunião
Combater o fascismo
Que mata nossa nação”
Um dos espetáculos mais poéticos desta temporada. Esses artistas mergulharam em prosa, lirismo e beleza. Não tem como dimensionar seus olhares, seus corpos, suas entregas. O espetáculo nasceu antes da pandemia, no SESC Tijuca, e até hoje circula nos palcos da cidade e fora dela, porque nele há beleza e há compreensão do belo.
O simples mais sofisticado que os espectadores poderemos assistir atualmente.
O texto é nobre, os movimentos também são nobres e pasmem, é atual! Afinal, a fome novamente ronda a sociedade, em voos de Pegasus, assusta, sem contar a tragédia na educação, que a cada dia perde mais espaço, a Cultura, então…
“Trem sujo da Leopoldina
Correndo, correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome.”
Tudo parece místico. Um espetáculo montado por meio de vozes e da percussão corporal.
Souberam fazer o Teatro, aquele artesanal, tão pouco vivenciado nos dias atuais. Contam a história do poeta Solano Trindade com o tom certo da dramatização. A verdade nua e crua, que simplesmente se repete, especialmente aos negros!
E o Teatro mais uma vez, abre o espaço de voz, é democrático e dá a transparência que se precisa ter, afinal somente por intermédio dela, a mudança poderá acontecer!
Histórias dos ancestrais chegam aos ouvidos com simpatia, embora as histórias sejam doloridas. Os artistas tocam a alma de todos que os assistem.
Durante a pandemia não pararam, seguiram com audiovisuais pelo Brasil, porque não se trata de qualquer obra, mas de uma obra oriunda da verdade, por intermédio de artistas que entendem bem a falta de fomento e de crédito dados a seus trabalhos, por serem negros, periféricos e pobres. Por não fazerem parte de uma “roda que se diz intelectualizada”.
E quando a oportunidade chega, eles alcançaram seus prêmios, merecidamente! Mostraram a capacidade de fazer Teatro, um teatro redondo, aveludado!
Solano é poesia, é corpo negro, é militância, é potência e é amor. Na contramão dos estereótipos criados para objetificar e discriminar os homens negros.
“Negra Palavra, Solano Trindade recupera a trajetória do poeta trazendo para a cena suas múltiplas vivências. Sua infância em Pernambuco, colorida pela sonoridade das feiras populares e pela ancestralidade do Maracatu. Sua militância em diversas cidades do Brasil, como cidadão negro sobrevivente em um país racista, lutando pela paz e contra a fome. Sua experiência como homem, entregue ao amor e ao cuidado da família.” (Sinopse)
Esses artistas são o Samba, são a verdadeira expressão da Cultura africana, tão latente e difundida no Brasil, para sorte de todos! Souberam fazer menção de sua fé, com doçura e muita beleza. Trouxeram seus sons! Especialmente no Carnaval os holofotes do mundo voltam-se para o Brasil, e por que será?
Porque todo esse batuque vindo de lá (da África) é daqui, e em um compasso delirante, a alegria, ainda que passageira, retrata o povo brasileiro, que como canta certeira Sandra de Sá, é portador de sangue crioulo! Já está mais que na hora desse Brasil entender ser o resultado dessa miscigenação de cor e de Cultura, que torna o povo multicutural, e tão lindo, que seduz o mundo inteiro!
Basta de preconceito, se somos o que somos é porque destilamos essa mistura de pele, sons, costumes, tradições e crenças… Acorda Brasil!
E assim a montagem segue entre as verdades do poeta Solano e a realidade dos pretos até os dias atuais. Mortes e mais mortes! A falta de políticas e de leis protetivas mais duras, o desrespeito ao Artigo 5º da Constituição, que assegura direitos iguais a todos os homens.
E quando a interação se faz entre os artistas e a plateia, a palavra mais certa para o momento é: encantamento.
“Molengo
sou molengo
cheio de dengo
Gosto também do seu dengo
gosto cafunar teu quengo
Sou molengo
molengo
cheio de dengo”
Esbanjam charme e são bem acolhidos por aqueles que assistem à montagem. A indumentária é simples, o cenário feito de corpos e a iluminação mais um artista no palco, pois dança elegante entre o belíssimo elenco. Um elenco dos sonhos: Adriano Torres, André Américo, Breno Ferreira, Drayson Menezzes, Eudes Veloso, Jorge Oliveira, Léa Cunha, Lucas Sampaio, Orlando Caldeira, Rodrigo Átila e Thiago Hypolito.
O roteiro de Renato Farias muito bem executado, sabe contar a história de Solano com clareza, com um texto democrático, acessível a todos, admirável!
A direção do Orlando Caldeira é visceral, real, que o faz alçar outros grandes voos.
André Muato é o diretor musical, sabe trabalhar com que pode e os recursos que tem, tem um olhar rico e inteligentíssimo. Usa das formas e da força dos corpos humanos para produzir sons inigualáveis!
Eudes Veloso tem outras funções além de atuar, é o produtor de conteúdo, e ele guarda essa obra com devoção, como quem guarda uma joia, e faz ele muito bem, pois essa obra tem mesmo muito valor!
Que este belo espetáculo siga alcançando novas almas e reverberando a história dos negros, esses que por décadas tentaram apagar, por um embranquecimento injusto e ridículo, que rondou e ainda ronda esse país.
A montagem é linda, gostosa de assistir, ávida, nada intimidada, forte e sedutora! Assistam!
FICHA TÉCNICA
Poesias: Solano Trindade
Roteiro: Renato Farias
Direção geral: Orlando Caldeira e Renato Farias
Elenco: Adriano Torres, André Américo, Breno Ferreira, Drayson Menezzes, Eudes Veloso, Jorge Oliveira, Léa Cunha, Lucas Sampaio, Orlando Caldeira, Rodrigo Átila e Thiago Hypolito
Direção musical e percussão corporal: André Muato
Direção de movimento: Orlando Caldeira
Direção de atores: Drayson Menezzes
Assistente de direção: Thati Moreira
Direção de arte: Raphael Elias
Assistente de arte e figurino: Júlia Marques
Iluminação: Rafael Sieg
Designer: Luang Dacach
Direção de produção e produção de conteúdo: Eudes Veloso
Produção-executiva: Thati Moreira
Idealização: Renato Farias
Produção: Saideira Produções Artísticas
Realização: Coletivo Preto e Companhia de Teatro Íntimo
Foto divulgação Maiama Prieto
NEGRA PALAVRA – SOLANO TRINDADE
Temporada até 26/6
Sede da Cia dos Atores
Rua Manuel Carneiro, 12, Santa Teresa
Sextas e sábados, às 20h e domingo, às 19h
Duração 60 min
Classificação 12 anos
Ingressos a partir de R$ 20
https://www.sympla.com.br/evento/ocupacao-negra-palavra/1610542