Eu: do feminino ao Plural

Escrever mais do que um ofício é pra mim um ato de prazer. Um momento ritualístico onde mergulho em minhas entranhas e navego por recônditos que muitas vezes insistem em se manter escondidos até o momento da escrita. Esta imersão além de me apresentar ao mundo, na pessoa do leitor, me revela a mim mesmo e me proporciona descobertas, risos, lágrimas, curiosidades, indignações, surpresas, raivas, temores e uma infinidade de emoções que não teriam sentido algum serem vividas se não pudesse ser compartilhadas com eles!

“Eu, feminino” era um espaço assim. Uma coluna que me aproximou da mulher que habita em mim, das outras mulheres, das mulheres do mundo, das mulheres existentes em outros corpos, por que não dizer de alguns homens e concomitantemente me transportou para esse minúsculo e enorme universo existente nesse ser humano que nomearam Laura.

Observar meu corpo, meu toque, minha sensualidade, minhas relações, as possibilidades que a vida me deu de ousar, experimentar, conhecer tudo o que a minha condição feminina permitiu desde o momento em que me desvencilhei gradativamente das amarras invisíveis que as convenções e os tabus foram estabelecendo ao longo da minha vida foi gratificante. E o processo nunca acabará. Perdurará até o último fôlego. Para, além disto, a coluna me aproximou do mundo, das pessoas, de outros espaços, de outras realidades, a cada texto e a cada leitura ou pesquisa que fazia para então enriquecer meus escritos novos universos se abriam e outras conexões eram estabelecidas.

Curiosamente, um pouco antes da pandemia, eu havia feito uma disciplina na universidade que falava sobre a visão sistêmica da vida e o pensamento sistêmico parece que tem se apoderado de mim. Cada vez mais tem ficado evidente o “todo” em minha vida e quando digo “todo” refiro-me a literalmente “tudo”, quando falo em relacionamentos, já não mais consigo pensar somente naqueles entre seres de uma mesma espécie. Penso nas relações estabelecidas nas redes, das cadeias que existem em toda a natureza. Nos processos, na circularidade presente na vida: na moda, na ecologia. No quanto a qualidade se sobrepõe a quantidade em vários aspectos. Em como o conhecimento contextual se aplica a tudo, a todos.

Quem somos nós? O que ou a quem podemos julgar? Tudo e todos somos resultados de interseções, somos produtos de um conjunto de influências, cooperações (ou não), incertezas (ou não) e portanto, tudo é relativo. Mas o mais encantador para mim é o pensamento sistêmico se predispor a ação não violenta, fomentar mais análise, compreensão e amplitude de horizontes. Há algum tempo, comentei com um famoso e renomado médico, conhecido inclusive internacionalmente o quanto me surpreendi com sua simplicidade, humildade e jeito simples de sentar-se comigo e outros profissionais da clínica onde eu atuava para conversar calmamente no jardim. Ele me respondeu que o conhecimento era como uma enorme montanha: quanto mais o adquirimos, mais alto chegamos e consequentemente mais longe nossa visão alcança, o que nos faz perceber o quão pequeno somos.

Confesso que dois anos pandêmicos e a imersão que alguns de nós fomos quase que impelidos a fazer com o isolamento social me levaram a fazer uma releitura de mim mesma. Portanto, “Eu, feminino” se tornou limitada para a concepção multidisciplinar que adquiri ao mudar minha perspectiva das partes para o todo como sugere o pensamento sistêmico. Quando me reconheci na condição do objeto e, deleitando-me no pensamento sistêmico, desenvolvi novas percepções das relações que estabeleço com o mundo. O que começou com a descoberta, ou melhor, reencontro com a minha real identidade de gênero, através de minha autoidentificação não binária e, portanto, descrita na Teoria Queer, estendeu-se e ramificou-se para um sem fim de temas e hoje me vejo assim: multiplicada, multifacetada, introjetada e ramificada em um emaranhado de setores, de assuntos, de espaços, de lugares, de tendências, de grupos, de causas, de sonhos, de motivações, de expectativas.

De forma alguma tenho a pretensão de acreditar que as percepções ou sensações que venha a compartilhar aqui sejam corretas ou revolucionárias, mesmo porque tenho consciência de que sou somente uma centelha nessa visão sistêmica perfeita e tão integralizada. Para tanto, a partir de agora e pelo menos por enquanto, estaremos juntos novamente neste espaço cedido pelo Jornal Portal, refletindo sobre os mais variados assuntos e onde me reencontrarão assim como estou: EU, PLURAL.