No carnaval da Sapucaí deste 2020, antes do mundo parar, o samba da Mocidade Independente de Padre Miguel já avisava em alto com som: “Laroyê e Mojubá, liberdade / Abre os caminhos pra Elza passar / Salve a mocidade / Essa nega tem poder / É luz que clareia / É samba que corre na veia”. Nunca é demais falar de Elza Soares, força da natureza e do samba nosso de cada dia. No ano em que se celebram 90 anos da seminal cantora, a Sony Music lança nas plataformas digitais o raro álbum “Senhora da Terra”, de 1979, lançado originalmente pela CBS.
Elza Soares teve uma passagem rápida pela gravadora, tendo lançado pelo selo o LP “Elza Negra, Negra Elza”, de 1980, e um compacto simples com as canções “Hoje tem Marmelada” e “Põe Pimenta”. É louvável a ação da Sony de resgatar fonogramas históricos da era analógica e que sequer em CD haviam sido lançados, de forma a fazer o devido registro da trajetória de uma artista da magnitude de Elza Soares, magnitude aliás de um terremoto de samba e negritude.
Elza Soares, nos anos 1960 – Foto: Acervo Pessoal
Ao gravar seu primeiro álbum em 1959, em plena efervescência bossanovista, a jovem cantora de Padre Miguel devolveu o samba às rádios e inaugurou uma fase de sucesso dos artistas do gênero no mercado fonográfico, o que permitiu que o grande público pudesse ter acesso às maravilhas produzidas nas comunidades e que jamais ultrapassavam as fronteiras dos terreiros das agremiações de carnaval e das rodas de samba do subúrbio. Inquieta, Elza ensaiaria algumas viradas estéticas na década de 1980, mas a guinada foi total em 2015 com o já antológico “A Mulher do Fim do Mundo”. A artista mergulhou na fonte de juventude com uma sequência de trabalhos audaciosos e plenos de contemporaneidade e brasilidade. Esta sonoridade renovada projetou Elza como uma importante ativista política, porta-voz das pautas identitárias mais pertinentes da atualidade: as lutas dos negros, das mulheres e da comunidade LGBTQI+s.
E se o “Elza Negra, Negra Elza”, produzido e arranjado por João de Aquino, já estava disponível em streaming, é importante redescobrir “Senhora da Terra”. A cozinha instrumental do trabalho é representativa do que de melhor existia na cena do samba da época: Wilson das Neves e Juquinha (bateria), Dino 7 Cordas (violão), Neco (violão 6 cordas e cavaco), Jaime Araújo (flauta), Geraldo (tumbadora) e As Gatas no coro, além de vocal, solos de violão de 6 cordas do maestro Luiz Roberto, que assina os arranjos juntamente com o maestro Nelsinho. A percussão ficou a cargo de Cordinho, Luna, Eliseu, Marçal, Risadinha, grupo Pandeiros de Ouro e Zequinha.
No auge de sua maturidade vocal, com divisões rítmicas dignas das divas do jazz, a cantora abre o álbum com a sarcástica “Põe pimenta” (Beto Sem Braço/ Jorginho Saberás), com uma ostensiva crítica social (“Põe pimenta, malagueta/ Põe pimenta que é pra ver se o povo aguenta!”).
Elza, sessão de fotos da capa de ‘Senhora da Terra’ –
Foto: Acervo Pessoal
Em “Coração Vadio” (Edil Pacheco e Paulinho Diniz), Elza extravasa nos improvisos vocais guturais, uma marca registrada. O batuque ganha as cores de metais e a gafieira entra em clima de jam session. “O Morro”, raríssima parceria dos saudosos Mauro Duarte e Dona Ivone Lara, versa sobre a rotina violenta dos morros cariocas, que mais parece um drama sem fim (“Tentando por todos os meios/ Meios pra sobreviver/ Num local onde a morte é o caminho menos mal/ Juro não vou desistir/ mesmo se ninguém me socorrer/ Apesar de saber que a luta é um tanto desigual”).
“Exaltação ao Rio São Francisco” (Waltinho/ Zezé do Pandeiro/ João Leonel) é a única regravação do álbum, mas já era em 1979 uma pérola desconhecida – um samba-enredo da escola Unidos dos Passos, de Juiz de Fora (MG), de 1977, sobre a transposição do rio que atravessa o coração do país – o tema voltaria a ser explorado pela Mangueira em 2006. Os versos “Ei, ei, vaqueiro, é hora de passar / Sacudindo o boi cansado para a boiada se salvar” parecem ter inspirado o ministro do Meio Ambiente que pensou em se valer do momento da pandemia para fazer seu saco de maldades desfilar.
As raízes afro-religiosas aparecem no samba “Afoxé” (Heraldo Farias e João Belém) contrastando com o mais dolente “Maria Pequena” (Guaracy de Castro e Roberto Nepomuceno), sobre “a primeira porta estandarte da escola de samba” que deu à luz em meio a um desfile na avenida. Por sua vez, “Abertura”, um partido alto de autoria da própria Elza Soares, é um samba faz referência à abertura política naquele ano de 1979, quando o AI-5 finalmente havia caído e a anistia aos exilados políticos se concretizou: “Abre a porta/ Abre o peito, abertura/ Linha fraca, linha forte, linha dura”.
“Alegria do povo” (Luís Luz e Ari do Cavaco) é um samba animado homônimo ao que a cantora gravaria seis anos depois em tributo a seu ex-marido então falecido, o genial Mané Garrincha. Também autor referente, “O carnaval” (Gerson Alves e Valentim) antecipava as transformações nas estruturas dos desfiles das escolas e o quão era importante o samba como uma cultura negra de resistência (em 2003, Elza regravaria no CD “Vivo feliz” com o nome de “Lata d’água”): “Samba mandou me dizer / Que precisa de tempo pra pensar / Ou mudar a cadência do samba do morro/ Ou resolver mudar o morro de lugar”. Mauro Duarte e Dona Ivone Lara reaparecem em em “Vê só malandragem” (“Alerta no morro é sujeira geral/ Otário vira cavalo de pau”).
“Paródia do Consumidor” é uma obra-prima da consagrada dupla Wilson Moreira e Nei Lopes, que naquele mesmo ano de 1979 daria à Alcione o hit “Gostoso veneno”, e “Senhora liberdade” à Zezé Motta. “Só chiar não dá/ A lei está a nosso favor/ Vamos virar a mesa / Em defesa do consumidor”, desafia Elza. Este álbum essencial é fechado com “Barraquinho”, de João Roberto Kelly, rei das marchinhas e do sambalanço, autor de um dos primeiros sucessos da sambista, “Boato”, de 1960. “Eu sou aquele barraquinho de madeira / Que ainda vive pendurado lá no morro de Mangueira / Você que é cobertura de Ipanema / Não escuta os meus anseios / Nem resolve os meus problemas”, provoca a diva.