Bacurau: vá em paz

Um futuro distópico que é o pesadelo de quem, no Brasil de hoje, ainda consegue dormir

Começamos a jornada no espaço, e de lá, na fluidez com que corremos pelas paisagens cinematográficas que abrem os longas de Kleber Mendonça Filho, para um caminhão-pipa que segue em direção a um pequeno povoado no município de Serra Verde, lugarejo retirado (à força, acabamos por saber) do mapa. Bacurau é um universo fechado, cujos moradores formam uma espécie de coletivo de resistência contra o governo municipal, que lhes cortou a água para cercear sua liberdade. Um lugar em que as arraigadas relações de poder não estão explícitas, como o pássaro noturno e bravo que lhe dá nome. Quando começamos nossa viagem, sendo lembrados por uma placa de estrada de que devemos ir em paz, estamos acompanhando o retorno de Teresa (Barbara Colen) para o enterro da avó. Assim que ela chega, é recebida por um morador, que lhe dá boas-vindas presenteando-a com espécie de “hóstia” local, um psicotrópico produzido da (semente?) de uma planta. Se o regresso de Teresa tem por motivo o funeral de Carmelita, desde a sequência de abertura, quando o veículo que a transporta atropela vários caixões caídos de um caminhão na estrada, começa-se a divisar um elemento-chave da trama: a subversão da morte, vista ora como impossibilidade (não se consegue matar aquilo que hiberna às escondidas), ora como processo necessário para um renascimento enérgico e potente. Assim, a morte da matriarca é também a morte do povoado, que vai renascer de um parto a fórceps. Em sua viagem lisérgica, quando a ausência de Carmelita se converte em outro tipo de presença, Teresa vê água brotar do caixão da avó, a água de que todos eles foram privados. Em outros momentos, a imagem do caixão surge novamente deslocada, como quando o prefeito Tony (Thardelly Lima) resolve comprar votos dos moradores com medicamentos para entorpecer, alimentos vencidos e ataúdes.

O processo de renascimento do povoado é impulsionado não apenas pelo enterro de Carmelita, mas pelas condições de penúria e isolamento extremos. Essa tensão entre interior e exterior é ampliada pela intromissão de um grupo de forasteiros. Aqui, temos a relação entre controle e vigilância expressa de diversas formas — da moradora que, à entrada do vilarejo, avisa aos locais por rádio de quaisquer visitas não usuais ao drone em forma de disco voador (e, pensando bem, o que fazem os discos voadores na Terra não é uma forma altamente sofisticada de vigilância?). Aos poucos, a disrupção dessas violentíssimas investidas num ambiente fechado, com uma série de invasões e assassinatos, força os moradores a caminharem da desobediência civil para a sublevação explosiva, centrada na figura de Lunga, um líder punk rocker queer, representante de um cangaço repaginado, mas em que ainda circulam relações semelhantes de poder. E pode-se questionar até que ponto, nesse contexto, se troca uma opressão por outra, caminho que o filme deixa apenas como esboço.

A partir desta fina linha narrativa, esse faroeste tecnológico on drugs (para certos personagens, literalmente) marcha com firmeza invejável em meio a uma série enorme de referências ao gênero, bem orquestradas pela direção precisa – Kleber Mendonça e Juliano Dornelles mostram a um só tempo domínio das ferramentas do gênero e capacidade de atualização. Nesse fluxo, vamos da grua que remete ao plano final de Matar ou morrer — mas aqui a solidão do personagem que caminha pelo vazio das construções é de outra ordem — à “gamezação” dos assassinatos (e podemos lembrar dos soldados americanos e sua trilha sonora para a guerra em Fahrenheit 9/11, de Michael Moore). O filme esmiúça com inteligente ironia a correlação entre o imperialismo estadunidense e os interesses de uma elite nacional que se acha americana (em todas as conotações que essa palavra ganhou quando roubada pelos Estados Unidos, que acreditam que, sozinhos, são a América), mas não é reconhecida nem mesmo como branca pelos fascistas a quem serve.

Se os personagens são um tanto planos (e faroeste não é exatamente o gênero da sutileza), Bacurau é um protagonista tridimensional em suas ambivalências, espraiado pelas figuras peculiares de seus habitantes, contrastando com os perfis pouco humanos dos estrangeiros, encabeçados por Michael (Udo Kier), que em sua dureza de tintas parecem os personagens não jogáveis dos videogames. Como Domingas, a médica local, Sônia Braga está mesmerizante e intimidadora desde sua primeira aparição, fechando abruptamente uma janela. A montagem, assinada por Edu Serrano, constrói esse mosaico de forma inteligente, pontuada por diversos inserts que parecem, eles mesmos, janelas para as imagens mentais que passeiam nos imaginários individual e coletivo das mulheres e homens do povoado.

O filme se passa num futuro próximo que, sabemos, é uma alegoria do Brasil de hoje, um pesadelo que faz acordar de sobressalto aqueles de nós que ainda conseguem dormir. No enredo, a ruína das instituições de outrora é mostrada de maneira bastante literal: temos a fachada destruída de um colégio, um ônibus escolar convertido em uma horta, livros atirados de um caminhão como entulho. Em oposição, enfatiza-se a potência questionadora das crianças que deveriam estar usufruindo desses recursos, a resistência das gerações futuras. “Tem que pagar para entrar no mapa?”, uma delas indaga, enquanto outra responde à pergunta da forasteira (“Quem nasce em Bacurau é o quê?”) com uma autoafirmação carregada de força: “É gente”. É uma delas também que, por seguir no escuro com a coragem de pés desafiadores, acaba alvejada por balas, impulsionando o confronto final.

[Para desviar de um spoiler, evite ler o próximo parágrafo]

O desfecho aponta para uma repentina erupção do que permanecia enterrado: é do museu que ninguém de fora visita que (literalmente) vêm as armas de uma nova guerra. Dessa forma, afirma-se a necessidade de se conhecer a própria história para munir-se contra o retorno do passado. Também a escolha de não matar o vilão, mas enterrá-lo enquanto esbraveja, avisando do seu retorno, aponta nessa direção. O fascismo e a violência não morrem, eles são apenas periodicamente varridos para baixo da terra, espaço do qual podem, dadas as condições, brotar sem aviso, o longa parece querer dizer.

Foto Divulgação

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