Avôhai

Entre o final de maio e o começo de junho, meu pai e meu sobrinho fizeram aniversário. O velho completou 60 outonos e o menino cruzou a faixa final do calendário pela primeira vez. A vida é o que acontece enquanto a gente se pergunta o que é a vida.
Não é só nas datas que os dois estão próximos. Muita gente diz que são parecidos fisicamente. Além disso, para meu irmão e minha cunhada trabalharem, meus pais têm ficado com o bebê, que está cada vez mais esperto.

Toda vez que vejo a cena do meu pai dormindo com o neto, me emociono. Paro e fico olhando a paz materializada na cena real. Volto ao meu passado, com meu irmão e o velho fazendo o mesmo conosco, na justa soneca da tarde. Memória tem cheiro de lençol limpo.
João, meu sobrinho e neto de meu pai, sempre agitado, respira no compasso leve do repouso. José, meu pai, quase sempre calmo, se completa no momento. E roncam no mesmo BPM, mas em tons diferentes.

Tem memórias que a gente inventa e tem memórias que inventam a gente. É visível para mim a cena da minha cabeça deitada no braço do meu pai. Respirando igual. Vivos. Ali era o melhor e mais seguro lugar do mundo. Agora, meu sobrinho se escora nessa paz.
Tenho certeza que meu irmão guarda as mesmas lembranças. Se não é porque ainda vai inventar. Ou ser reinventado por elas. Mas sei que ele fecunda os mesmos pensamentos. Tem o velho como exemplo. Baobá de tudo.

Na música Avôhai, Zé Ramalho fala de seu avô, que o criou como filho. O cantor e compositor diz em um trecho: “O meu velho invisível/Avôhai/O meu velho e indivisível/Avôhai”. Assim são algumas relações humanas: indivisíveis, mesmo que a olho nu não se note algo além.

Ainda sobre a música, a letra termina cantando: “Eu tenho a palavra certa pra doutor não reclamar”. A palavra certa é sempre o amor. Seja como for. No caso é de um velho Avôhai.