O tempo passa e quando se passa de meio século, as oportunidades de ver coisas belas e horríveis nos leva sempre à reflexão. Uma reflexão, que nos momentos bons e ruins da juventude não é tão evidente e profunda, o que é de certa forma até bom, pois auxilia a superação de todas as coisas com mais leveza, resiliência e impetuosidade. A vida segue e entre um ciclo e outro, seja de qual tipo for (acadêmico, laboral, político, pessoal), volta e meia aparece mais um vestígio triste da intolerância humana presente entre nós.
Logicamente, onde há pluralidade sempre haverá discordâncias. Pensamentos diferentes, perspectivas distintas. Preferências variadas nascem na unicidade, peculiar às mentes humanas. Ocorre que, seja para concordar, ou discordar, para agregar, ou separar, desde que o mundo é mundo o homem vem se aprimorando em definir hierarquias. O poder esteve presente em pequenos grupos sociais, ou em sociedades numerosas. Todavia, para conquistá-lo, seja empírica ou propositalmente, as classes dominantes sempre tiveram que submeter as demais as suas regras, códigos e modelos predefinidos.
Que os padrões e as convenções sempre me incomodaram não é novidade para ninguém. Escrever sobre isso consiste sempre numa esperança a mais de tocar a alma e atingir a subjetividade de cada leitor. Sendo assim, trago um pouco de mitologia grega para coluna de hoje. Contarei a história do “Leito de Procusto”. Na mitologia, Procusto era um bandido que possuía uma cama de ferro exatamente do seu tamanho. Ele se fazia de gentil e oferecia sua casa como abrigo aos viajantes. Nela, havia uma cama curta e outra comprida. Assim que os visitantes adormeciam eram amordaçados e Procusto fazia-os encaixarem-se perfeitamente na cama, ora cortando as pernas, dos que eram maiores que ela, ora esticando-os e quebrando seus ossos com o martelo para que chegassem ao tamanho da mesma. De uma forma, ou de outra, todos eram mortos, porque nenhum nunca se enquadraria nas camas que Procusto oferecia. Por essa razão, este mito está associado à intolerância humana.
Portanto, façamos uma analogia com os tempos atuais. Todas as vezes que querem nos enquadrar em padrões, ou que uma minoria sente-se maior do que um grupo de pessoas, passamos pelo “Leito de Procusto”. Talvez em relação aos dogmas, convenções e padrões de nossa sociedade contemporânea, algumas vezes morte consiste no tanto que somos obrigados a nos reprimir para nos submeter a enquadramentos, em outras ela de fato ocorre fisicamente. Nas coletividades, a sensação de superioridade de dominadores sobre os dominados culminou em atrocidades vis, como o extermínio indígena, a escravidão e o holocausto. Em todos os casos, quem não se enquadrava nos padrões pressupostos por um grupo era subjugado.
De qualquer maneira, seja para tentativa de enquadramento, ou por mero domínio, os “Procustos” estão sempre apresentando um lado sutil, engenhoso e até popular (em algumas situações) para formatar o povo de forma dócil. A docilidade é demonstrada quando sem questionamentos, absorvemos o dito como certo, sem sequer contestar, sem conhecer o que está nas entrelinhas e nem a quem tais padrões e enquadramentos realmente favorecem. Lutar pelo conhecimento, pela liberdade, despir-se de julgamentos prévios, infundados e ir em busca da essência de tudo e de nós mesmos é certamente uma forma de “fugir” do “Leito de Procusto”. Em suma, os absurdos que vemos na atualidade, as Marielles, os Evaldos e os Genivaldos são exemplos recentes de pessoas que não conseguiram escapar do mito. “Espero que nós consigamos escapar do (s) mito (s)!”