A Substância

De: CORALIE FARGEAT
Com: DEMI MOORE, MARGARET QUALLEY, DENNIS QUAID

Personagens unidimensionais que existem unicamente para provar uma tese banal sobre a indústria da beleza e a forma como o patriarcado lida com o envelhecimento da mulher.

Uma atriz, anteriormente famosa, hoje relegada ao ostracismo e a um antiquado programa matinal de ginástica, é confrontada com o fim de sua carreira justo no dia do seu aniversário. Elisabeth Sparkle, que detém o sobrenome perfeito para explicitar o conflito central, entende que perdeu seu brilho e, assim, seu valor no universo em que sempre se inseriu. É quando, por puro acaso, ela é recrutada por um estranho submundo (altamente tecnológico ou estrategicamente underground, oscilando entre esses dois polos de acordo com as necessidades do fraco roteiro). Neste universo, ela é apresentada à substância, um composto capaz de alterar o DNA de um indivíduo e produzir uma nova versão deste sujeito, uma espécie de duplo, mais jovem, mais potente e mais desejável, que pode assumir a vida da matriz por sete dias, período após o qual a versão original precisa reassumir o controle por outros sete dias, e assim por diante, com original e duplo dividindo igualmente o tempo. Desesperada, Elisabeth faz uso da fórmula e surge Sue, uma espécie de boneca erótica viva, que tem sobre a versão original unicamente a vantagem de ser um objeto sexual mais eficiente e ainda mais passível de dominação. O meteórico sucesso de Sue – porque tudo que uma mulher precisa para ter sucesso na indústria do entretenimento é ser submissa e bela – vai fazer com que Elisabeth perca completamente o domínio sobre sua própria existência, à medida que o duplo decide se converter em protagonista.

Se a premissa não é desinteressante e a apresentação prende a atenção, a trama caminha para o precipício a passos progressivamente mais largos ao longo de intermináveis 140 minutos, janela de tempo em que o espectador mais sensato vai precisar questionar: Quantas vezes você pode reproduzir a iconografia que pretende criticar antes de se converter num duplo, indistinguível, da sua crítica? A sensação é de que a diretora e roteirista Coralie Fargeat parece acreditar que ser mulher e abordar, ainda que superficialmente, questões de gênero a mune de um salvo-conduto para repetir à exaustão closes hipersexualizados das duas protagonistas (e aqui é interessante pensar se o filme não fornece ao olhar masculino a valiosa oportunidade de se deliciar com o processo de objetificação do corpo feminino com uma espécie de “autorização” dada pela chancela feminista que a narrativa propagandeia).

Os corpos de praticamente todas as mulheres em cena são invadidos pela câmera com tanta frequência e de modo tão violento que a sensação é que ao menos meia hora do filme é composta de closes de bunda, planos ginecológicos e suas variantes, imagens que se tornam pouco a pouco desinteressantes e enfadonhas, num processo de dessensibilização que faz com que as partes de um corpo feminino evoquem menos emoção que os reiterados closes de vísceras, insetos ou alimentos grosseiramente manipulados. Se esses últimos ao menos trazem repulsa, os corpos femininos, que inicialmente evocam desejo, se convertem em elementos menos vivos que as paredes ou os azulejos de um banheiro, num conjunto em que o processo de ultraestetização é o elemento mais marcante, uma estetização sem a menor coesão interna – se o programa de ginástica parece saído dos anos 1980, um show de virada de ano parece retirado dos 1960, enquanto a casa da protagonista tem elementos do agora onipresente futurismo retrô.

Entregues à grosseira vivissecção, as personagens se definem unicamente pela sua adequação ou inadequação ao papel de objetos sexuais; seu único vivo desejo é corresponder ao ideal de beleza e, em consequência, despertar o desejo masculino. Para além do tesão do homem, não há nada; essa é de fato a substância que permeia a vida dessas mulheres. Tanto Elisabeth quanto Sue desejam tão somente serem desejadas. Longe do olhar masculino, elas não têm qualquer preocupação, qualquer anseio e – o mais grave – qualquer mínima relação (na realidade do filme, as mulheres não têm amigos, não têm famílias, não têm interlocutores que não os homens que as desejam ou as desprezam porque elas não são mais capazes de despertar neles o desejo, único valor possível e única moeda de troca que interessa).

Assim, se talvez fizesse algum sentido que a belíssima Margaret Qualley, criada para isso, uma espécie de Mulher Nota 1000, agisse o tempo inteiro em prol da manutenção do seu papel de objeto (com esgares e suspiros típicos de um filme pornô de bom orçamento), a conversão de Demi Moore em um corpo incapaz de suscitar o desejo exige um malabarismo tão grande que obriga a fotografia, a iluminação e a direção como um todo a exercitarem uma perversidade atroz. A câmera parece gritar: “Olhem como Demi Moore está acabada, olhem como, neste ângulo canhestro, com essa maquiagem de Coringa, sob esta luz exata, ela também é feia. Olhem que atriz corajosa ela é por se revelar finalmente feia, inteiramente nua. Olhem, olhem, olhem, podem olhar sem medo da repressão”. A realidade, no entanto, é que Demi Moore, com seus 60 e poucos anos, é uma mulher belíssima e é preciso um duplo twist carpado para imaginar que esta mulher não conseguiria se manter como objeto sexual, se, por um problema muito grave de imaginação, esta fosse de fato sua única vontade na vida.

Não é porque estamos diante de um universo fantástico que devemos perdoar a criação de personagens unidimensionais, que existem unicamente para provar uma tese banal, dar corpo (frise-se: dar-se enquanto corpo) a um discurso que não traz novidade alguma sobre a indústria da beleza e a forma como o patriarcado lida com o envelhecimento da mulher. Cabe notar que é muitas vezes no cinema de gênero que surgem personagens femininas complexas, em tramas que debatem essas questões de maneira nuançada e original (são exemplos filmes como Raw, de Julia Ducornau, e Tiger Stripes, de Amanda Nell Eu, para citar dois títulos da última década dirigidos por mulheres). Além disso, o conflito central soa falso, já que é impossível divisar a estranha razão que leva Elisabeth à manutenção de um duplo cujas experiências ela não pode experimentar e que passa a ameaçar diretamente sua existência. De maneira semelhante, são insondáveis os motivos que levam a personagem a passar a agir como uma mulher completamente irracional e se entregar à falta de higiene e compostura pessoal, quando anteriormente ela levava a uma vida aparentemente bastante controlada. Mais uma vez, a tese parece ser a de que tudo que separa uma mulher “normal” da completa loucura é sua derrocada do panteão sagrado do desejo masculino.

Neste contexto, o fato de que o filme venceu o prêmio de melhor roteiro em Cannes construindo personagens de papel-cartão reiteradamente objetificadas e envolvidas em um conflito central tão mal embasado poderia ser uma ofensa a todos os roteiristas em atividade na indústria do cinema, não fosse o fato de ter sido a presidência do júri ocupada por Greta Gerwig, uma cineasta medíocre que alçou o estrelato justamente ao conseguir embalar o discurso feminista com os laçarotes rosa-choque do consumo mais palatável possível, um feminismo de fast food incapaz de produzir qualquer reflexão mais profunda.

Se falta substância ao filme de Fargeat, sobram referências a Cronenberg e um apelo à estética gore, pontuado por planos detalhe que poderiam ter sido retirados da famosa abertura da série Dexter (em que seu uso fazia mais sentido narrativo). Por fim, estamos diante de uma obra que parece culpabilizar as mulheres pela manutenção de sua objetificação, assim como Barbie cria personagens femininas dispostas a se entregaram ao machismo imediatamente e sem qualquer oposição quando ele se apresenta pela primeira vez como alternativa. Não importa o tom de farsa, especialmente quando se trata de um tema premente da pauta contemporânea: é sempre possível criar, em qualquer universo ou sob a égide de qualquer gênero, mulheres minimamente tridimensionais.

Poucas semanas atrás, o Talibã decretou que as mulheres afegãs não deveriam falar em voz alta em público, já que “a voz de uma mulher é algo muito íntimo”. É interessante notar que, num filme em que têm seus corpos tão expostos, as mulheres falam tão economicamente, à exceção dos momentos em que precisam explicar em voz alta suas intenções, sublinhando o óbvio (também reforçado por uma estranha voz acusmática masculina, que surge em pontos-chave para explicar a trama, como se o espectador fosse incapaz de conectar os pontos). No fim das contas, num filme escrito e dirigido por uma mulher, é esta voz masculina, desconhecida e misteriosa, esta voz de poder, que serve de guia. Ela é a única substância possível numa trama em que as mulheres são reduzidas a corpos amordaçados que, em liberdade e reiteradamente, recusam seu papel de sujeito, sendo convertidas à posição que anseiam: a de objetos mudos. Se Fargeat de fato pretendia criticar o patriarcado, ela terminou por reproduzi-lo ao criar seu duplo, este mais eficiente que o original: mais belo, mais forte, mais potente, mais adaptado ao mundo de hoje.

Créditos: Críticos.com.br