Tudo começa com a voz de Grace Passô, em um diálogo riquíssimo e provocante, em que ela convida os espectadores a análises profundas, em breve palavras. Grace, atriz negra, que chama a atenção por dramaturgias impactantes, consagrada e ganhadora de diversos prêmios teatrais importantes, não podia estar longe dessa fazenda, e não está!
Em um compasso refinado, vozes negras poéticas são latentes em suas retóricas. Leveza diante de um texto denso… Quatro jovens atores fazem a plateia virtual ficar boquiaberta. Sedutor, esse elenco negro vem muito bem intencionado a fazer o melhor e nitidamente chegam lá.
Chegados de um navio negreiro, o tumbeiro, seus papéis transportam a uma das mais agonizantes histórias deste Brasil.
Um trabalho monocromático, com a contribuição da luz, que, diga-se de passagem, está perfeita. Matheus Brant, Giovanna Kelly e Gabriele Souza estavam antenados, um grande salve a eles!
O espetáculo, inevitavelmente, toma uma crescente, a história desalmada e racista narrada pelo elenco negro conta sobre a “adoção de crianças negras”, levadas à fazenda Cruzeiro do Sul. Fazenda construída com tijolos, marcados pela suástica, sim, tijolos nazistas! Mas, atenção, essa é uma história do Brasil. Infelizmente.
Crianças, passadas por órfãs, ou abandonadas, levadas de orfanatos do Rio de janeiro para serem escravizadas em São Paulo, assim como aconteceu com Luiz Gama, aos 10 anos.
Eram cinquenta crianças, escolhidas como gado, para aqueles fazendeiros apenas números. Elas apanhavam e trabalhavam, sob ameaça e tortura, como homens.
Uma história de dor e lamento, uma memória de um período doente, que não devia ter existido, mas que jamais poderá ser apagado. Os negros, quase cem anos depois, continuam sofrendo com o racismo brutal e covarde, cometido pelo próprio Estado.
Na Zona Sul do Rio de Janeiro, a antiga sede do Orfanato Romão Duarte, de onde saíram tantas crianças fadadas ao infortúnio destino de escravidão e sofrimento, hoje abriga uma Escola Municipal. Esse mesmo Estado, que não protegeu suas crianças, hoje ainda mata crianças pretas, mesmo no ventre, mata também a jovem, negra grávida mãe, mata com “balas perdidas” endereçadas a corpos negros e pobres.
Essas mesmas crianças de 1930 saem das tumbas para contarem histórias que estavam enterradas no silêncio.
O audiovisual é belíssimo. Executado para a construção de uma necessária desconstrução deste preconceito camuflado e perverso, ainda entranhado na sociedade brasileira. O vídeo usa efeitos inimagináveis, que funcionariam bem também no presencial, certamente os espectadores irão gostar. Gabriela Miranda, Isadora Brant e Matheus Brant são responsáveis pela técnica empregada. As vozes dos quatro atores são bem compassadas, estão perfeitas.
A atriz Marina Esteves, a única mulher no elenco, representa com devoção o gênero.
Parece sangrar em seu íntimo, por sua raça parece entender na alma, essa história covarde vivida por seus ancestrais. Que atriz imensa, de arrebatadora performance. Suas expressões faciais são relevantes e hipnotizam o espectador.
Ailton Barros, Filipe Celestino e Jhonny Salaberg são os três artistas que abrem o Mar Vermelho, vermelho de sangue, de covardia. Eles duelam entre si, se questionam, fornecem conteúdo, demonstram o medo, as indagações. E se fugirmos, para aonde vamos?
São artistas que trazem a público mais uma vergonha desse Brasil. E não há dívidas? E não precisam reparação?
Por intermédio desse elenco, os espectadores são levados à fazenda do mal! Claramente, essas crianças artistas brincam com seus papéis. As rimas da dramaturgia são bem-vindas, o poético da dor causa admiração. Um texto inteligente e contemporâneo. Lucas Moura foi assertivo.
O Hip hop chega, e nada mais justo, pois o gênero musical da subcultura própria da década de 70, oriundo das comunidades jamaicanas, latinas e afro-americanas é perfeitamente adequado ao tema. Representação artística perfeita dos guetos, dos subúrbios e da periferia. A direção musical de Dani Nega é contundente e legítima.
Os artistas desaparecem e aparecem como fantasmas, lembram Ziembinski, que certamente não faria diferente. Tudo bem elaborado. Os efeitos sonoros também contribuem grandemente com a obra. Dão vida. A direção foi perfeita, irretocável, uma filmagem bem enquadrada, nota-se o cuidadoso olhar da direção, tudo milimetricamente supervisionado. Tudo medido, da iluminação ao figurino, uma filmagem que carrega dignidade. Olhar robusto e profissional de Roberta Estrela D’Alva.
Há um jogral lindo a espera dos espectadores. O espetáculo está na programação do Festival Midrash, que promete repetir o sucesso de crítica e audiência da edição anterior, realizada em 2020. Este ano com a democrática curadoria de Márcio Abreu, traz temas importantíssimos para todos os brasileiros. Vale muito a pena conferir!
Acompanhem a programação e não deixem de assistir a “Desfazenda”. É de suma importância entender o passado, desconstruir o presente — e qualquer comportamento racista contra aqueles que sempre contribuíram imensuravelmente com a cultura brasileira — para construir um futuro coletivo e democrático.
Que todos os corações sambem livremente, que a luta deles seja de todos, que não se ouça mais o tilintar das correntes que escravizam, que as vozes desses quatro artistas ecoem, criem asas e reverberem libertação!
DESFAZENDA — ME ENTERREM FORA DESSE LUGAR
On-line e gratuito
Única apresentação 28/7, às 19h
Duração: 70min
Classificação: 12 anos
Ingressos Gratuitos ou colaborativos pela plataforma Sympla
FICHA TÉCNICA
Direção: Roberta Estrela D’Alva
Dramaturgia: Lucas Moura
Direção Musical: Dani Nega
Elenco: Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves
Vozes Mãe e Criança: Grace Passô e Negra Rosa
Direção de Imagem e Montagem: Gabriela Miranda e Matheus Brant
Direção de Fotografia: Matheus Brant
Consultoria Artística: Daniel Lima
Som direto: Ruben Vals
Treinamento e desenho de spoken word: Roberta Estrela D’Alva
Produção Musical: Dani Nega
Figurino: Ailton Barros
Desenvolvimento de figurino: Leonardo Carvalho
Marcação de cor: Lucas Silva Campos e Samira França
Operação de câmera e Efeitos óticos: Isadora Brant
Design Gráfico: Tide Gugliano
Fotos: David Costa, Isadora Brant, José de Holanda e Tide Gugliano
Legendas: Francisco Grasso
Desenho de Luz: Matheus Brant
Operação de Luz: Gabriele Souza
Técnica de iluminação e traquitanas: Giovanna Kelly
Produção: Corpo Rastreado (@corporastreado) – David Costa, Gisely Alves e Julia Tavares
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto – Marcia Marques, Carol Zeferino e Daniele Valério
Realização: O Bonde
Imagens adicionais : Teranga – Daniel Lima
Fotos de Arquivo – Tese “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945)” de Sidney Aguilar Filho
Dramaturgia livremente inspirada no filme “Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil de Belisario Franca.