Sonho comum da alma

Passa a beleza da primavera com cores e flores inesquecíveis, passa o outono com brisas que embalam, passa o tenebroso inverno, onde é possível se aquecer com uma xícara de chá, ou de chocolate quente, e passa o verão, que aquece os corpos, só o que não passa, é a lembrança de uma mãe, que ama incondicionalmente e por infortúnio da vida, deixa órfão um filho.

“Edu (Rafael Primot), um escritor de rótulos e embalagens, precisa revisitar seu passado e sua família no interior, depois de um longo período morando na cidade grande. À medida que ele narra essa volta ao lar, e seus desentendimentos e afetos com a irmã (Marjorie Estiano, em off) e o pai, revive lembranças de sua vida na casa de família, especialmente aquelas em que esteve ao lado da mãe.”  (Sinopse)

A dramaturgia navega entre os limites da narrativa ficcional e biográfica: alguns dos momentos foram inspirados por uma história real vivida pelo autor, em fusão com outras histórias ouvidas e captadas. (JS Pontes – Assessoria de imprensa)

Precisa entender como a dramaturgia foi concebida, para entender as lágrimas do ator em cena e da narrativa que alcança a plateia, que deixa cair mais lágrimas. Lágrimas da plateia e as lágrimas que rolam por aí imperceptíveis, lágrimas nos travesseiros, que mergulham em espumas e ficam por lá silenciadas, lágrimas que contam histórias das dores da alma.

Ao entrar no Sesc Tijuca o cenário de Marco Lima é charmoso, belo, rústico e conversa. De uma vitrola, de dentro de uma mala, nascem plantas, assim como nascem plantas da cadeira onde a mãe estaria sentada. Que ideia e representatividade tão sofisticadas, além de sentidas pelo cenógrafo. “Elas geram oxigênio, alimentos, fibras, combustíveis e remédios que permitem aos humanos e outras formas de vida existir. Elas também são essenciais para o controle da temperatura da Terra e o equilíbrio e dinâmica da água no planeta. Sem plantas não existiria vida!” E sem a mãe seria possível?

Que maravilha de cenário! O tapete e o móvel, um banco que está no centro do palco, também são belíssimos. Tudo com cores que harmonizam. Uma troca perfeita, de muito bom gosto. Vale lembrar que o profissional esteve em “O Mistério de Irma Vap”, espetáculo de grande sucesso no Brasil!

A trilha sonora não conta com um vasto repertório, no entanto, as duas músicas que compõe as cenas são lindíssimas.

O figurino de Débora Falabella cumpre sua função, e encanta com magnitude a última cena. Haja lágrimas, que abraço lindo entre a indumentária e os últimos parágrafos. Que beleza! Que encanto! Que maravilha! A originalidade e os sentimentos trasbordam a cena.

A voz de Marjore Estiano dá vida a voz da irmã do personagem, no entanto, o ator do solo também a encarna. A voz pausada da atriz é bem-vinda aos ouvidos, nada ruidosa, uma delícia!

De todo modo, o que precisa ser destacado é a grandiosidade do texto, o movimento que tem.  Quando assisti ao espetáculo pela primeira vez, notei que o ator, inicialmente, parecia não estar tão conectado ao texto, até uma parte da peça. Mas foi só uma percepção, talvez até imatura de minha parte, pois o texto evolui desenfreadamente, e assim também evolui o ator. O autor está certo de que a força motriz evoluirá gradativamente ao longo da dramaturgia, e ele sabe arrancar do espectador tudo que almejava enquanto escrevia. O texto parece conectar, e segue, segue gostoso, conquistando os que assistem. O texto não é pequeno, são falas e mais falas de vários personagens humanos e não humanos, como o cachorro que a família tem. O ator apresenta o pai do protagonista, com um tom de voz muito bem escolhido por ele. Em alguns momentos do texto são trazidas verdades que somente aqueles que vivenciaram a peregrinação dolorosa de uma doença e sua fase terminal compreenderão.  Alguns entenderão de alma. A peça também permite umas escapadas de risos da plateia. Tudo bem temperado pelo artista. Que tem uma carreira consolidada, pois não é raso em absolutamente nada que faz!

Uma trajetória linda e real do espetáculo. Há profundidade, sentimentos que afloram e remetem as vivências do passado, sentimentos que invadem sem pedir licença. Mergulhar na memória afetiva nem sempre é prazeroso, mas é inevitável e necessário, afinal são as histórias da vida, que como se sabe, tem começo, meio e fim.

E é bom ser sacudido, pois ainda estamos vivos por aqui e valorizar o que ainda se tem é o melhor ‘insight’ que o ser humano pode ter, para viver mais intensamente os sentimentos. Abraçar e estar ao lado de quem está por aqui e quem se ama, é realmente saber aproveitar a vida!

A última cena é o desejo da maioria dos humanos, mas nada de spoiler, quando o público poderá entender o sonho que alcança cada um. É de uma beleza ímpar, o artista compartilha dos desejos daqueles que se permitem sonhar de olhos abertos por sentirem tanto amor e gratidão. Um sonho de dentro da alma, que permite seguir almejando a hora de realizá-lo, que dá força e alimenta a fé. Seria possível falar um, dois ou três parágrafos sobre essa última cena, mas seria injusto com o autor, que brilhou, reluzente como um cometa, ao levar tamanha graça e sentimento ao palco.

— Particularmente, o melhor desfecho que já assisti no Teatro, talvez por seu um sonho comum, um sonho meu, e por alguém ter intuído e entendido o que eu mais gostaria que me acontecesse!

Quanto ao leitor, vá assistir e responda para si mesmo, se estou certa, ou errada!

 

FICHA TÉCNICA 

Texto e Atuação: Rafael Primot

Direção: Rafael Primot e Rodrigo Frampton

Figurinos: Débora Falabella

Iluminação: Sarah Salgado

Trilha Sonora: Marcelo Pellegrini

Cenário: Marco Lima

Design gráfico: Haroldo Miklos

Voz em off: Marjorie Estiano

Fotos de Estúdio: Priscila Prade

Fotos de Cena: Kim Leekyung

Coprodução: Morente Forte Comunicações

Produção: Enkapothado Artes

Operador de luz e som: Lucas Maciel

Administração: Nana Martins

Produção Executiva: Katia Placiano

Apoio: WAM Hotéis – Hotel Nacional – RJ  e  29 Horas

BABY – VOCÊ PRECISA SABER DE MIM

Sesc Tijuca – Teatro 2

Rua Barão de Mesquita, 539, Tijuca

Quinta a sábado, às 19h e domingo às 18h

Ingressos R$30, R$15 (meia) e R$7,50 (credencial plena)

Horários da bilheteria Terça a sábado, das 9h às 19h e domingo, das 9h às 18h

Duração 70 min

Classificação 12 anos

Gênero drama

Capacidade 44 lugares