Laís era médica e se orgulhava de ser. Havia se esforçado e estudado muitos dias e muitas noites inteiras para estar ali, naquela cadeira. Olhava para seu carimbo com oito números, que a situava em meio a uma multidão de tantos outros médicos, que se formaram antes dela e entre outros muitos, que ainda estavam por vir. Era uma linda profissão e um sonho de criança realizado. Mas era uma profissão tão linda quanto pesada, exaustiva. Ninguém a havia preparado para tamanha dedicação.
Era bonito ouvir o relato de um paciente com carinho, com cuidado. Conhecer sua história, suas cicatrizes e entranhas emocionais. Tocar, ouvir, enxergar e intuir. Eram pré-requisitos básicos para o início de uma boa relação médico-paciente e as chances de um bom desfecho dependiam, na maioria das vezes, de um bom começo.
A realidade era, muitas e muitas vezes, distante de um cenário cinematograficamente belo. A beleza de um diagnóstico preciso e a pronta resolução do problema pareciam, às vezes, beirar à ilusão. Doenças são traiçoeiras. Pessoas são complexas e às vezes nem querem ser curadas, por mais incrível que isso possa parecer. A doença dói. Mas, às vezes, não ser incapaz dói mais. Ser competente pode ser o que faltava para o desastre de uma vida.
Ela gostava de ser médica quando andava de jaleco pelos corredores. Sentia um vento no rosto e o jaleco abria suavemente conforme ia dando seus passos (sempre) ligeiros. Médico tem pressa. A sensação de andar pelos corredores do hospital de forma apressada, sabe-se lá o porquê, dava a ela a sensação de potência. Sensação de resolução e de pronta-entrega da felicidade ao longo do corredor. Sensação da salvação, do poder de curar em suas mãos.
As boas notícias eram disputadas. Todos querem entregar e se vangloriar do feito. Querem o respeito. Trazer de volta à vida, expurgar o sofrimento, curar as feridas. Executar bem um procedimento e ouvir o som do coração percorrendo o corpo inteiro em fração de segundos. Conhecer a impecável anatomia e fisiologia humana é uma dádiva, uma potência. Basta lembrar delas para ela deixar de duvidar de Deus.
Mas sofria tanto a Laís…
Via muita dor, muita devastação emocional. Ouvia, incansavelmente, todo tipo de lamentação. Corpos vivos em putrefação. Mas a vida deve seguir, não é, não? A todo custo, não importa a condição? Cobravam corpos e mentes em perfeito funcionamento, ainda que tivessem conduzido suas vidas tomando venenos em pequenas doses, mutilando e amputando cronicamente seus órgãos. Agora os queriam sãos… e salvos.
Sofria porque aprendia tanto. Tanto sobre si mesma. Se via cometendo os mesmos erros dos que agora jaziam sobre as macas frias. Sofria porque anunciava as limitações futuras, as sequelas profundas. Se sentia, vez ou outra, um anjo da morte.
Não imaginava que ser médica era também sobre ser mais forte do que a sua própria dor, do que seu próprio medo, do seu cansaço e desespero. Uma piscada lenta, um descuido, uma alienação. Basta uma, para uma vida a menos em suas mãos.
Um certo dia ordinário de trabalho, Laís assumiu seu plantão no CTI. Estava um pouco desanimada naquela manhã, mas pronta para encarar as próximas 24 horas, que seguiriam sob seu comando. Foi quando adentrou no leito do senhor Kleber para a visita matinal.
Kleber era um senhor de 89 anos, que havia sido internado durante a madrugada com um quadro de hemorragia digestiva de origem intestinal. Ele tinha doença diverticular intestinal difusa e apresentava um quadro de hemorragia de grande monta. Estava com a pressão baixa, devido ao sangue perdido e precisava ficar em observação, em um leito de vigilância intensiva, onde receberia transfusão de sangue, além de reposição hídrica e eletrólitos adequadamente, para estabilização da sua frequência cardíaca e pressão arterial.
Enquanto Laís conversava com senhor Kleber, notou uma serenidade fora do comum em seu olhar ao lhe dizer:
— Minha filha, se não for pedir muito eu gostaria que me deixasse morrer.
Laís parou o seu exame físico por uns segundos e retrucou:
— Como assim, seu Kleber? Eu não posso deixar uma coisa dessas não! Estou aqui para ajudar o senhor e vamos resolver o seu problema! Pode ficar tranquilo, que vamos fazer de tudo para que o senhor fique bem o quanto antes! Imagina… deixar morrer!
Laís imediatamente fez um diagnóstico de depressão, com ideação suicida em sua mente e já estava traçando uma conduta medicamentosa para controlar tal situação. Foi quando o senhor Kleber voltou a falar, ainda serenamente.
— Minha filha, eu tenho 89 anos. Eu já fiz de um tudo na minha vida. Trabalhei muito, me diverti demais, tenho família, filhos criados, netos maravilhosos. Viajei tanto pelo país inteiro e para vários países distantes. Conheci tanta gente, vivi cada história… Passei por crises financeiras, emocionais. Me divorciei e casei de novo. Tive cachorros. Muitos cachorros. Fui muito à praia, nadei muito em mar aberto. Amava fazer isso todos os dias pela manhã. Sempre fui muito mais do dia do que da noite, sabe? Levava um livro e depois de nadar, lia muitos capítulos até voltar para casa e começar a produzir.
Enquanto seu Kleber falava, Laís observava atenta os seus sinais vitais e sua palidez cutânea acentuada pela hemorragia ainda ativa.
— Por isso eu lhe peço, minha querida. A minha hora chegou, acredite. E está tudo bem! Eu estou realmente pronto e feliz por ter vivido tanto.
Laís percebeu que seu quadro se agravava e pediu licença ao senhor Kleber. Estava confusa com suas palavras tão profundamente verdadeiras e tranquilas, diante de um momento onde todos se curvam e se desesperam. Ela não ia parar enquanto não fizesse tudo que estava a seu alcance para recuperar o estado delicado de saúde dele. Ligou para o banco de sangue e pediu mais bolsas de hemácias. Fez medicações, que tentassem estancar o sangramento e entrou em contato com a equipe cirúrgica, pois provavelmente seria necessário realizar uma cirurgia de grande porte. O estado do senhor Kleber ia deteriorando rapidamente e, quanto pior ele estava, mais sereno e plácido ficava.
Conforme Laís já imaginava, todos os esforços na tentativa de conter o sangramento intestinal do senhor Kleber foram em vão. Seus órgãos nobres foram parando de funcionar pois com a perda de sangue sua pressão arterial estava baixa demais e a perfusão dos órgãos estava gravemente comprometida. Ela estava perdendo o senhor Kleber. E tudo que ela pode ouvir, bem baixinho, nos últimos segundos foi:
— Fique em paz, minha filha, que eu vou bem! Eu vivi e você não deixe de fazer o mesmo.
Assistolia.
Laís ficou alguns minutos ainda do lado de seu corpo inerte, mas ainda conseguia enxergar nele um discreto sorriso de canto de boca. Quantas são as pessoas que alcançam a plenitude de morrer sorrindo? O êxtase de ter tido uma vida completa. Não perfeita e sem problemas, mas vivida, degustada e sugada até o último gole.
Saber viver era para poucos. Saber morrer, menos ainda.
E Laís seguia amando, sofrendo e aprendendo diariamente com a medicina.