Enquanto você voava, eu criava raízes

A natureza, os orixás e os santos não se comunicam por meio das palavras, mas quem estiver atento aos sons, aos movimentos, poderá ouvir a sua força e seus recados. Assim é a Cia Dos à Deux.

Existem sons belíssimos, há o barulho das ondas e o dos trovões, do estalar das asas das borboletas, ou das notas do talentoso Federico Puppi, que no mesmo compasso atua com encanto. E ajuda a compor e a embelezar os movimentos corporais dos artistas no palco do Oi Futuro, por intermédio de sua música. Notável a paz, os sentimentos bons que cercam o musicista, pois não há como criar tão belas composições sem estar imerso nessa onda de boas vibrações. E a sensação de bem-estar invade a alma de quem ouve.

O talentoso músico já passou por essa coluna anteriormente e ficamos felizes por tê-lo aqui novamente, sinal de que o Teatro está mais vivo do que nunca, e que as produções valorizam quem realmente sabe fazer. Puppi é um profissional com um valoroso trabalho, prosperidade musical e a arte recompensa um ser humano que almeja o bem, só pode ser! Na última premiação da Associação dos Produtores de Teatro (APTR), o espetáculo “Mãe de Todos” levou quase todos os prêmios, entre eles, o de Música, claro, trilha composta por Federico. O violoncelista carrega paixão pelo que faz e em seus olhos há calmaria, é assim que ele executa suas obras, sem leviandade, sem pecar. Ter esse profissional em uma ficha técnica é uma benção dos deuses. Fato!

A Cia Dos à Deux é composta por dois homens, que estudam as Artes Cênicas desde 1998 e por meio do teatro gestual atuam com magnitude, sabem a importância da música em suas obras, e foram assertivos em convocar Federico e suas composições!

O espetáculo não é nada convencional, como tudo que essa companhia faz. Mas, dessa vez, pegaram mais pesado, foram ainda mais fundo e mergulharam no íntimo de cada um deles, impactando profundamente cada um que assistem à peça. Segundo o artista, “esse é um dos espetáculos mais difíceis em discernir em palavras, mas que o amor ainda é o sentimento mais sublime, o que faz acontecer, que ao salvar o outro, salvamos a nós mesmos. O espetáculo é sensorial em seus 55 minutos, escorregando em um tobogã de sensações individuais”.

Durante o atravessamento catastrófico enfrentado pelo Brasil durante o período pandêmico, a Cia Dos à Deux entendeu a necessidade de acolher o próximo. E conseguiram apresentar um espetáculo que fala a cada um de maneira diferente, o que é incrível! Tudo depende de como o espectador enxerga a vida e o outro, do olhar de cada um. Então, as percepções e sensações durante o espetáculo são distintas e cada um é impactado de uma forma diferente. Isso é muito visceral, pois traz a oportunidade da conscientização, de se evoluir quanto pessoa.

Os profissionais da Cia Dos à Deux são imensos em tudo que fazem, não são rasos em nada, em tudo há um porquê, e um porquê mais humano, que possibilita a sair da bolha! E é justamente o que mais se precisa nos dias de hoje. Enxergar o mundo que existe fora de sua própria bolha. Nessa obra, os artistas mergulham em um abismo, o que demanda muito esforço físico, isso é visível pelos olhares e pelos músculos se contorcendo, eles alavancam elementos e sentimentos fortes, quase místicos, mesmo que esse tenha sido o propósito, tudo parece ser mais do que o esperado.

Vive-se um momento tão violento, aonde pouco se percebe o desespero do outro, a ferida do outro, a dor do outro, é raro se colocar no lugar do outro, e mesmo quando as palavras não alcançam, a linguagem silenciosa atravessa o peito. Os gestos, as intenções, os ímpetos falam para o mundo sem que ouçamos suas vozes! A sutileza dos artistas trazida aos palcos, com movimentos tão suaves que surpreendem, pois falam mais que mil palavras e o impacto não é pequeno.

Esse não é o primeiro espetáculo que assisto da Cia Dos à Deux, assisti a “Irmãos de Sangue”, meu primeiro experimento, onde também não ouvi texto, mas uma dramaturgia clara, como um dos rios mais límpidos que já havia visto! Obras de uma beleza, que faltam palavras para falar sobre, e mesmo assim, permitem reencontramos de alguma forma com o passado, e mais uma vez, no silêncio, eles nos alcançam…

São jogos de luz, sombras, mímicas, tudo muito bem executado, são profissionais que exalam conhecimento e são excêntricos ao fazer Teatro. Uma arte, que eu nunca tinha contemplado, efeitos no palco, que ficaram marcados em minha retina e tudo isso, para falar sobre o outro! É um espetáculo que deslumbra, a iluminação compõe cenas inesquecíveis, impressionante como tudo está ligado, uma coisa depende da outra para que tudo alcance a perfeição. Mais uma vez, o outro.

A Cia Dos à Deux, mesmo diante de tantas mazelas políticas, enche todo brasileiro de orgulho, permite entender que essa pátria mãe gentil é bela e rica em todos os sentidos, é só olhar adiante, para o outro, para todos os multiversos que integram a sociedade, para se perceber o quanto se é capaz. Um país plural, culturalmente riquíssimo e com infinitas possibilidades.

A percepção de que o outro importa ficou em evidência durante o enclausuramento, quando foi possível compreender a importância do outro, mesmo enquanto o líder de Estado insistia mostrar o contrário.

E foi aí, que os artistas André Curti e Artur Luanda Ribeiro puseram-se a sentir, a criar, a cumprir seu ofício, que vai além da cientificidade do Teatro, vai no amar, no compreender o que dá real sentido à vida, o outro.

Entende-se que no mais épico Teatro os dramaturgos exaltavam o ser humano, seus sentimentos, suas falhas, porque esse é o verdadeiro sentido do Teatro, refletir o homem, suas habilidades e imperfeições, revolucionar por teses mais profundas, implícitas ou explícitas, dependendo da concepção artística, ajudar a entender aquilo que deve ser entendido.

O espetáculo “Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes”, em todo seu processo de montagem, deixa em evidência o ser humano, suas dores e sentimentos, a liberdade, o alcance, o peso das inúmeras sensações vivenciadas no íntimo.

O espetáculo também conta com Diirr, que está presente com toda sua genialidade em trazer objetos de cenas cheios de expertises, que causam inclusive, desdobramentos ainda mais suntuosos. É o caso dos braços prolongados em dois metros do artista em cena, que traz a impressão do que não é alcançado e a luta inconstante para se alcançar, um comportamento inerente ao humano. Para qualquer mergulho é necessário alongar, esticar, e é sempre bom lembrar desse movimento. A metamorfose faz parte da vida, e somente por isso, se é possível alçar voos maiores.

O cenário comporta uma roda, que fez lembrar do homem vesuviano de Leonardo da Vinci, e por incrível que pareça, o homem foi o centro de todo o estudo do grandioso gênio.

Ao final do espetáculo, os artistas ensinam a quebrar barreiras juntos, mostrando a força da união, que pode levar a possibilidade de voar. Muito aprendizado pode-se levar dessa obra, como reconhecer a fragilidade do ser e principalmente, o quanto coletivamente se pode atravessar barreiras, o quanto o outro pode agregar.

Quanto a Cia Dos à Deux, lembra o bicho-da-seda, que delicadamente faz seus novelos, com toda sutileza necessária, faz seu trabalho, que tem por finalidade os fios. E após inúmeros casulos, e um trabalho exaustivamente bem executado, assume a mais bela seda, encanta e depois voa, como Grifo-de-Ruppell! Obrigada Cia Dos à Deux!

“Há dois anos, quando, em virtude da pandemia, estavam isolados na casa-sede da Cia. Dos à Deux no Rio de Janeiro, André Curti e Artur Luanda Ribeiro iniciaram um longo processo criativo de seu novo espetáculo: Enquanto você voava, eu criava raízes. A partir de uma imersão profunda, os artistas encontram na solidão uma liberdade criativa que ainda não haviam experimentado em 30 anos de carreira. Assim como em suas obras anteriores, eles partiram de uma palavra-chave para elaborar a dramaturgia visual. O medo – e as múltiplas sensações provocadas por este sentimento – foi o ponto de partida desta montagem. Porém, não apenas o medo enquanto força paralisante, mas como um impulso para uma travessia rumo ao renascimento.” (Sinopse)

FICHA TÉCNICA

Direção, dramaturgia, cenografia e performance: André Curti e Artur Luanda Ribeiro

Música original: Federico Puppi

Iluminação: Artur Luanda Ribeiro

Cenotecnia: Jessé Natan

Assistentes de cenotecnia: Bruno Oliveira, Eduardo Martins e Rafael do Nascimento

Criação de objetos: Diirr

Criação videográfica: Laura Fragoso

Imagens: Miguel Vassy e Laura Fragoso

Figurino: Ticiana Passos

Operação de som e vídeo: Gabriel Reis

Operação de luz: Filipe Medeiros e Tiago d’Avila

Contrarregragem: Iuri Wander

Preparação/criação percussiva: Chico Santana

Costura da caixa preta: Cris Benigni e Riso

Costura dos figurinos: Atelier das Meninas

Assessoria de imprensa: Paula Catunda

Mídias sociais: Mariã Braga

Designer gráfico: Bruno Dante

Fotos: Nana Moraes e Renato Mangolin

Coordenação administrativo-financeira: Alex Nunes e Patrícia Basílio

Produção executiva: Ártemis e Alex Nunes

Direção de produção: Sérgio Saboya e Silvio Batistela – Galharufa Produções

Realização: Cia Dos à Deux

ENQUANTO VOCÊ VOAVA, EU CRIAVA RAÍZES

Temporada até 25/9

Quinta a domingo, às 20h

Oi Futuro

Rua Dois de Dezembro, 63, Flamengo

Ingressos R$ 60 e R$ 30 (meia)

Venda de ingressos na bilheteria do Centro Cultural Oi Futuro, de quarta a domingo, e pela plataforma Sympla.