Estava lendo essa semana a questão da genealogia em Foucault, sobre a descontinuidade da história. Para quem não entende muito bem a discussão, ou ainda não leu, basicamente Foucault afirma que a história não é contínua, mas feita de acontecimentos, irrupções, que produzem efeitos. Do tempo e lugares que ocupo agora e tendo em vista a finalidade deste texto, não me cabe aprofundar o tema, mas deixo ao final duas referências para vocês me refutarem.[1]
Chamou-me a atenção que algumas vezes pensamos na história de uma forma muito linear, como se ela seguisse um curso, tal o qual jamais veríamos o mundo retrocedendo em pensamentos, atos e políticas tão arcaicas, conservadoras, bregas, e antidemocráticas, como observamos atualmente. A história é como uma dançarina, vai e volta sobre o mesmo eixo, faz da queda um reinicio, rodopia, dá saltos… E essa metáfora é especialmente importante porque é do corpo das mulheres que quero falar.
Essas políticas arcaicas e machistas têm como alvo principal o corpo das mulheres e os direitos sobre ele. O feminismo tanto lutou contra os efeitos produzidos pelo machismo no corpo, vida e discurso das mulheres, visando formular novas regras de convivência social, mais liberdade, e o que vemos hoje, entretanto, é a tentativa insidiosa de retrocesso e recrudescimento das regras na mesma mão em que remamos contra.
Exemplificando minha indignação: O Brasil, sobre a gestão da ministra da goiabeira, juntou-se à Hungria, Polônia e outros governos fundamentalistas na ONU, com o objetivo de extirpar de um documento oficial, qualquer menção a “direitos sexuais e reprodutivos”, sem abrir qualquer brecha para que mulheres decidam sobre seu corpo. O que está em jogo aqui é a restrição do acesso à informação, negação de diretos sexuais e reprodutivos, isso resulta de fanatismo religioso particularista tido como pensamento universal, é exercício de poder!
O que é isso? Qual sentido de vivermos tudo isso? Nossa fina camada de razão e consciência consegue digerir, que em pleno 2021, depois de tanto nadar, vivemos para ver tanto retrocesso? Só posso pensar que meu incrível senso de esperança não é razoável, e a ideia de que o mundo fosse sempre constituído como um lugar melhor, em constante ascendência para se tornar um lugar livre, é arrogante e falsa.
Mas, o importante filósofo francês, não me deixaria mentir se me conhecesse e vivo estivesse, também afirma conformações e lutas pela história, sendo assim, há esperança. Quais? De que possamos construir rupturas e acontecimentos que irrompam o obscurantismo reacionário e produzam um projeto de direitos humanos, de saúde sexual e reprodutiva, de autonomia do corpo das mulheres, de antimachismo, um projeto outro, mais democrático. Complementando meus questionamentos sobre o sentido do desenvolvimento da história e nossas lutas por um projeto humanitário, que não se desmanche no ar, encerro com uma outra grande filósofa, Ângela Davis: “ liberdade é uma luta constante”[2].
[1] Foucault, M. Microfísica do Poder. Organização e introdução de Roberto Machado. Graal (1977). Foucault. M. A verdade e as Formas Jurídicas. NAU edições (2002).
[2] Davis, A. Liberdade é uma luta constante. Boitempo, (2018).