Voltei à academia essa semana, tive coragem de enfrentar um pouco a rua e retomar algumas atividades, com os devidos cuidados. Alguns vão dizer que estou louca, mas escutem (leiam) até o final. Pois bem, na academia descobri que o mundo nunca parou de girar. A Covid só existe como um espectro inconsciente, que manda passar álcool em gel e usar máscara no supermarketing. Exemplos: “abraçar pode porque eu não acredito que pega assim”; “Passei só um mês em casa, no segundo dava mais não, estava ficando louco”; “Quando tinha pandemia era mais complicado”; “trabalhei todos os dias”.
Isso me fez pensar sobre a covid-19 e suas consequências. Não exatamente sobre as consequências de hospitalização, de processos derivados diretamente da doença, mas de suas consequências sociais, psicológicas e o escarnio do abismo social em que vivemos.
Em artigo publicado na BBC, um pesquisador aborda a Covid não como uma pandemia, mas uma “Sindemia”, uma junção entre o termo pandemia e sinergia. O conceito aborda, não uma mera neologia, mas o quanto é necessário ampliar os horizontes sobre as possíveis interações e relações sistêmicas originadas entre as condições ambientais, as doenças não transmissíveis e a desigualdade social. Um mais um será sempre mais que dois!
Com uma mortalidade de 2%, a Covid é agravada por doenças crônicas e degenerativas, como a Hipertensão, o Câncer, o HIV/AIDS, a obesidade e também pela dificuldade de acesso à educação, à informação, às medidas sanitárias e pelo sucateamento do sistema único de saúde. As doenças não transmissíveis, como as citadas, também estão presentes nos territórios e comunidades mais pobres, causando mais mortes entre aqueles que possuem vínculos mais precários com o sistema de prevenção, proteção e recuperação de saúde. Coincidência? Acho que não.
O surgimento do dito popular que a Covid-19 pega em ricos e pobres, em brancos e negros, enfim, que ela não escolhe os corpos, obscurece o fato de que ela mata mais as populações de territórios mais pobres. Não só pelas suas consequências diretas, mas também por ser intimamente ligada à profunda desigualdade social a qual o país e a população estão submetidos.
Como podemos pedir para que as pessoas passem quase um ano dentro de casa, se o governo, os ministérios, dão notícias contraditórias e definitivamente, não fazem o mesmo e nem se quer protegem a renda e os vínculos de trabalho? Como podemos cobrar respeito e “bom senso” se as pessoas mal sabem como se contrai Covid? Como podemos pedir medidas de “segurança” se não há segurança alimentar, sistema de saúde, as moradias são precárias, e não há garantia de renda? Como pedir que o povo ame sua vida e a proteja, se são descartáveis?
Que mundo cindido é esse em que vivemos, que um fato mundial pode ser interpretado de um lado com preocupação, zelo, medo, e de outro como inconveniente, mentiroso, falta de trabalho, insegurança? E entre esses lados não há possibilidade de empatia e diálogo.
Em linhas gerais, quero dizer: Sim, são os mais pobres os que estão morrendo, não só de Covid, mas de um projeto de abandono e de “descartabilidade” deliberado. Vivemos uma crise de saúde muito antes de sermos interpelados pela Covid, porque abandonamos a população, porque abandonamos o sistema, porque abandonamos as pesquisas, porque se emergem doenças tidas como controladas, porque não garantimos segurança, renda, educação, moradia, lazer, aparelhos culturais, porque não conseguimos comunicar. Mas sempre queremos cobrar.