Hoje está sendo especialmente difícil parir um texto. Sinto que é pela minha necessidade de silêncio, diante de tanto absurdo. Diante de tanta morte, violência e sangue derramado no chão, da irracionalidade brutal negacionista do racismo no Brasil. Mas assim como aprendi com Grada Kilomba, falamos, porque temos que. Somos obrigados a falar porque já fomos silenciados demais e porque ainda não nos resta opção.
Dizem que a morte é uma espécie de liberdade. A possibilidade de vislumbrar um lugar que seja um campo limpo de toda a tragédia e mazelas presenciadas em vida. A morte era um direito negado aos negros escravizados, a negação da sua liberdade em vida e em morte. Só quem tinha poder sobre seu corpo era um outro, um outro branco, posto que seu corpo não era portador de uma alma, era apenas um pote, a ser usado a disposição de seu dono. E esse poder, que cheira a brutalidade e violência, hoje se perpetua pelo mesmo mecanismo de deixar viver, ou de deixar morrer. A nossa liberdade encontra-se no punho de alguém, e esse alguém é branco.
No dia anterior a comemoração, se podemos assim chamar, da consciência negra, o Brasil foi chocado pelo assassinato brutal e asqueroso de um homem negro dentro de uma rede de supermercados. Nada aconteceu, ele olhou, o guarda olhou, se retirou e tudo começou, tem um quê de irracionalidade no ar. A violência deferida contra Beto não foi uma violência do hoje, era uma violência histórica, um ódio ancestral, um ódio de raça e de classe. Após o ocorrido, aparecem 200 policias aparatados para defender o patrimônio milionário do Carrefour, mas quando um homem negro estirado no chão pediu ajuda, o único policial presente era o que já estava lhe batendo.
Olhei para o lado neste dia e lembrei dos homens negros que conheço. Poderia ter sido cada um deles, e de alguma forma, todos aqueles que têm consciência disso, sentiram um dos socos deferidos.
Beto, Miguel, João Pedro, Marielle, Claudia, Amarildo, Agatha. Alguns de tantos outros de nós que se foram. Ceifados por uma insistência do não reconhecimento de que há racismo no Brasil e de que algo precisa ser feito, porque enquanto uma pessoa negra ainda for ameaçada de morte, seja por assassinato, fome, omissão, ou apenas por existir, não haverá qualquer perspectiva de democracia neste país. Pois então, que lutemos, que choremos, gritemos, falemos, mas, que por isso e apesar de tudo isso, vençamos. Quero ter a certeza de que um dia chegaremos no campo da liberdade e teremos irmãos, que foram verdadeiramente livres, para nos receber.