Ryûsuke Hamaguchi se tornou o cineasta japonês mais aclamado dos últimos anos quando seu Drive My Car se consagrou um dos filmes mais premiados da temporada 2021-2022, vencendo, por exemplo, o prêmio de melhor longa-metragem de 2022 da Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema) e o Oscar de melhor filme internacional (antigo Oscar de melhor filme estrangeiro). O filme foi indicado também aos Oscar de melhor roteiro adaptado, melhor diretor e melhor filme (esta última indicação é feito raro para obras não faladas em inglês, e Drive My Car foi o primeiro filme japonês a conseguir a proeza). Interessantemente, o prolífico Hamaguchi havia lançado no mesmo 2021 um filme absolutamente brilhante, mais original que o longa multipremiado e que, talvez por se tratar de uma antologia, formato conhecido por seu apelo comercial notoriamente restrito, passou quase despercebido pelo circuito brasileiro. O belíssimo Roda do destino é um conjunto de três histórias independentes que versam sobre o acaso e o poder dos encontros fortuitos. De fato, o encontro inesperado é um elemento-chave de ambos os filmes; em Drive My Car, temos dois personagens fechados em si que, a partir de uma convivência profissional, ressignificam os traumas do passado.
O mal não existe, por sua vez, também parte de um encontro. Aqui, no entanto, trata-se do choque entre um universo isolado, um pequeno vilarejo nevado, plácido e pacato, e os interesses do grande capital, encarnado nos débeis funcionários de uma corporação que deseja construir ali um empreendimento que segue o canhestro conceito do glamping (ou glamourous camping, um camping de luxo para que ricos possam ter a ilusão de participar de uma atividade que, historicamente, sempre foi realizada justamente por aqueles que não têm acesso a hotéis cinco estrelas ou querem desfrutar a experiência de imersão em lugares mais remotos e de natureza exótica). De início, o filme segue o cotidiano de Takumi (Hitoshi Omika) e sua filhinha Hana; ele, pai solteiro, possivelmente viúvo, trabalha cortando madeira e recolhendo água ou outros recursos naturais para fornecê-los a pequenos comerciantes locais, num processo rudimentar de extrativismo, muito respeitoso, de ares quase solenes. O filme, que se inicia com um longo e belo travelling dos galhos das árvores desfolhadas da região contra o céu, se detém nas ações de Takumi, em longos planos, em geral fixos, em que o personagem está perfeitamente integrado ao ambiente que o circunda, num equilíbrio que induz o espectador quase ao hipnotismo. Nesse contexto, tem destaque a muito competente fotografia, que passa de planos gerais de paisagens com pouquíssimos elementos humanos, que assustam ao mesmo tempo em que fascinam, para pequenos detalhes dos movimentos naturais e seus rastros (a água límpida de um córrego, uma pena de um pássaro, ervas que crescem em meio a galhos secos), compondo um ambiente cuja beleza aterroriza. Um universo cheio de segredos aos quais o espectador não tem acesso, mas que entende perfeitamente que Takumi domina.
Esse estado de placidez é rompido de forma brusca com uma longa sequência, que mostra o debate público entre os executivos da empresa exploradora e os habitantes locais. Nessa bem-humorada passagem, os funcionários, atônitos (entre eles, a figura maravilhosamente canhestra de um ex-agente de talentos em crise profissional), tentam sem sucesso responder satisfatoriamente às muitas questões dos habitantes do povoado, que exibem com desenvoltura seu vasto conhecimento das particularidades da região. Esse ponto de virada prenuncia o violento choque entre esses dois polos e é sentido pelo espectador, que, chacoalhado pelo conflito, precisa abandonar à força seu estado quase meditativo (toda a parte inicial do filme traz econômicos diálogos e tem um ritmo que replica a pasmaceira do povoado) e passa a antever um desenlace potencialmente trágico para a disputa.
O desfecho mostra a incompatibilidade fundamental entre os interesses do capitalismo (dito selvagem por suas ações predatórias) e aqueles que levam uma vida de harmonia com a natureza (dita selvagem porque não inteiramente domesticada), mas o faz de forma poética e surpreendente, sem apelar para um discurso autoritário. Em vez disso, ao fim da sessão, acessa-se um outro estado sonambúlico, e o público vai do sono tranquilo ao pesadelo, posto em cena em toda a sua glória estética e vertigem narrativa.
Em cartaz: Estação Net Rio – Botafogo
Créditos: Maria Cau/Criticos.com.br