Humberto era do tipo rabugento e carrancudo. Mas era de berço mesmo. Já nascera assim. Era difícil tirar um sorriso de seu rosto e sentir frescor e jovialidade em suas palavras desde sempre. Era tanto amargor que chegava a ser cômico. Nada o agradava e nunca estava bom o suficiente.
Era difícil ser o senhor Humberto. Conviver consigo mesmo era o seu maior desafio.
Os anos passaram e ele chegou à senilidade. Aos poucos, as suas capacidades físicas e mentais foram se perdendo e aquele porte altaneiro foi dando lugar a uma coluna curvada e um olhar ressecado e ressentido.
— Ressentido de quê, vovô?
Perguntou sua neta mais nova durante um almoço em família enquanto ouvia os grunhidos do avô Humberto, reclamando, sabe-se Deus lá o porquê.
— Ressentido com a vida, minha filha. Com essa vida que não é fácil viver.
— E por que não é fácil?
Retrucou a pequena.
— Porque ela não vale a pena. Não vale o esforço. Esforços inúteis sem recompensas. Não há nada de extraordinário em estar vivo. Melhor mesmo seria morrer de uma vez.
Grunhiu, mais uma vez, suas peçonhentas palavras.
Senhor Humberto adoeceu gravemente e foi levado às pressas ao hospital. Precisou ser internado na unidade de terapia intensiva e uma longa luta pela vida havia se iniciado ali. Tubos para ventilação, acessos venosos para infusão de medicamentos, cateter para hemodiálise, respiração artificial, coma induzido, sondas de aspiração, cateter para alimentação, feridas na pele abertas pela imobilização. Nada mais era natural e espontâneo nas funções vitais do senhor Humberto. Não comia e não respirava mais sozinho. Não urinava mais e uma máquina vinha fazer o trabalho dos seus rins paralisados. Seus membros se movimentavam passivamente através das mãos das fisioterapeutas. Não falava mais. Não podia sequer reclamar ou resmungar como de costume, pois a cânula traqueal não permitia a passagem do som.
A família e toda equipe médica imaginou que o senhor Humberto não iria muito longe. Dada a gravidade de seu caso e sua relação peculiar e um tanto quanto desgostosa diante da vida, todos imaginaram que ele logo se desligaria do corpo físico e abandonaria esse mundo, que tanto criticava e reclamava. Não era nada apegado.
Mas os dias foram passando… dias, semanas e meses foram se completando. Senhor Humberto não morria. A família já quase não o visitava mais e a equipe do CTI não conseguia entender tamanha força e vontade de viver. Sua idade avançada já era suficiente para que seu corpo não resistisse aos inúmeros procedimentos e infecções as quais ele vinha passando, repetidamente. Mas ele insistia em se manter vivo. Insistia em se recuperar de todas as intercorrências e de acordar mesmo com o sangue impregnado de drogas sedativas para seu conforto e analgesia. Definitivamente, ele não queria morrer.
A equipe desistiu de tentar entender o curioso caso do homem que se recusava a morrer e manteve senhor Humberto com todo o aparato necessário para que continuasse vivíssimo.
Senhor Humberto já fazia parte da equipe do CTI e tinha seu leito cativo. Todos do hospital já o conheciam e se apegaram a ele. Faziam festa no seu aniversário, colocavam filmes na televisão, música na rádio e conversavam com ele, como se houvesse alguma resposta, algum retorno. Esperavam até um conselho do senhor Humberto. Ele se tornou uma espécie de sábio e detentor dos segredos da imortalidade.
Mas não havia. Nunca houve. Ninguém nunca ouviu a voz do senhor Humberto desde que ele internara lá. Mas seu coração era ouvido a cada segundo. Insistia em permanecer batendo, ritmado e compassado.
Até que um dia a sua neta mais nova foi visitá-lo. Fazia tempo que ninguém aparecia por lá. Ela entrou no seu leito e tocou em seu rosto, tentando acorda-lo para alguma ínfima reação. Qual não foi sua surpresa, seus olhos abriram e se fixaram nela. Lágrimas começaram a rolar pelo canto de seu rosto, molhando o travesseiro. Ela não disse nada, mas acariciava suas mãos enrugadas e atrofiadas pelo desuso. Senhor Humberto, que até então, nunca tinha falado, tentou balbuciar algumas palavras para sua neta.
— Ela vale a pena sim. Vale todo o esforço. Viver é extraordinário.