Luiz Fernando Veríssimo, sempre afiado, certa vez escreveu uma crônica sobre um possível fim do mundo e o que as pessoas fariam sabendo disso. Para quem respondeu, ou pensou, que faria tudo aquilo que não era permitido, Veríssimo chamou atenção para o fato de que estas pessoas, na verdade, tinham seus comportamentos balizados pelo medo da lei, e não por seus valores éticos. Ou seja, se não houver consequência você comete crimes, por exemplo. Coisa que não faz hoje, com medo de ser preso.
Pois eu trago esta discussão para o carnaval. Historicamente, o carnaval aparece como período em que se permite maior liberdade. Seja pelas restrições do período de quaresma que o segue, seja, em alguns relatos e sociedades, como período para extravasar. A grande questão é que uma maior liberdade ou um ato de extravasamento são o exagero de algo. Ou seja, algo que você já é, ou pratica, levado a proporções maiores. E não a liberação para ações fora de seu padrão de valores. Ou seja, se você pratica ou banaliza a violência contra a mulher, no carnaval você faz isso com maior intensidade e às claras.
Sim, mas e o carnaval com isso? Na verdade, o foco não é o carnaval, mas sim a violência contra a mulher. E essa sim exacerbada no carnaval. Uma pesquisa feita ano passado apontou que 49% dos homens acham que bloco não é lugar de “mulher direita”. 61% acredita que “mulher sozinha” em bloco não pode reclamar de assédio. Isso, meus amigos e amigas, é a crônica do assédio anunciado. O aviso da violência contra a mulher. O prenúncio do estupro. Isso, meus amigos e amigas, é um absurdo!
Carnaval, e a vida de modo geral, têm que ser pautados por alegria, liberdade, mas também garantia de direitos, inclusive de integridade física. Não podemos nos silenciar ante a violência contra a mulher. Não podemos aceitar que nossa sociedade permita, com seu silêncio, que mulheres sejam apropriadas com violência, como se objetos fossem. Não podemos aceitar isso no carnaval e fora do carnaval. Esse é um problema que assola as mulheres. As fere diretamente. Mas também é uma questão para os homens que não aceitam a violência como princípio. Homens que querem uma sociedade melhor, mais digna, justa, igualitária e fundada pela empatia. Homens que querem se afirmar como seres humanos empáticos e não como potenciais estupradores.
Mas se existem esses dados de violência contra a mulher, existe também resistência. Que bom, estamos vivos e saudáveis. Já existem blocos de e para minorias e, especificamente, de mulheres. Blocos que gritam em seus sambas e seus nomes, o direito a ser mulher e respeitada. Apetrechos de carnaval clamam pela liberdade e a vida das mulheres. É o carnaval mostrando que, se de um lado a pior face da sociedade vai para a folia, a resistência também está lá. Aliás, resgatando a tradição dos blocos que é de fazer a crítica social com humor.
Cito, e deixo como dica, alguns destes blocos. Tem o Toco Xona (@tocoxona), Mulheres Rodadas (@blocomulheresrodadas), Bloconce (@obloconce), O Rebu Bloco (@orebubloco), Bloco das Trepadeiras (@blocodastrepadeiras), Maria Vem com as Outras (@mariavemcomasoutrasbloco), enfim, lugares de alegria e resistência. Na moda também há resistência, as blusas da @setemulheres trazem frases feministas numa série especial de carnaval, com as frases “depois do não tudo é assédio”, “o corpo é meu e de quem eu quiser” e “liberdade, igualdade e sororidade”.
Enfim, vamos à vida, à alegria. Vamos ao carnaval. Vamos, a cada dia, debatendo e transformando a sociedade. Só há um jeito de seguirmos neste mundo: acreditar que ele pode ser melhor e agir em prol disso.
Por isso, bom carnaval. Se presenciar uma cena de violência contra a mulher, sendo homem ou mulher, se solidarize. Proteja a vítima. Mostre que ela não está sozinha. Mostre que tem gente que quer um outro mundo.