Uma dose de cada

Inventei de ver umas fotos antigas no Facebook (ainda existe) e me deparei com uma de um grande amigo que morreu há uns anos. Era bem mais velho que eu, já tinha mais de 60 anos, mas bem saudável e com muitas boas ideias na cabeça. Valmir foi assassinado em condições trágicas: se envolveu com um cara mais novo que o roubou e o matou, deixando o corpo, que só foi encontrado dias depois, em um terreno escondido, cheio de mato.

Foi figurinista de TV por décadas. Guardava uma sabedoria sobre Carnaval, futebol e cultura popular para acadêmico tirar o chapéu. Beber umas com ele era certeza de aprender alguma coisa e dar boas risadas com suas frases de efeito.

Em uma das tantas cervejas que tomamos juntos, entre umas doses, Valmir me falou que aprendeu a enganar a vida. Dizia que esse era o segredo para estar quase sempre muito bem. Homossexual assumido, viveu um mundo de preconceitos e sempre deu seu jeito para peitar ou driblar os problemas, tal como Garrincha do seu Botafogo.

Ficava bravo demais quando sacaneávamos o time dele. “Não fala do Botafogo que viro homem”, brava nos bares cheios de machos machistas. Estaria feliz com a campanha do Glorioso esse ano. Estaria, não. Está. Com certeza. Afinal, ele aprendeu a enganar a vida.

Valmir me disse uma vez que a vida funciona assim: ela vem amarga às vezes para ficar doce depois. Passada as fases ruins, vêm as boas. Os segredos dele eram misturar as fases – uma dose de cada, dizia – e fingir épocas tristes para a danada da vida criar períodos bons.

“Às vezes, eu nem tô triste, mas aí fico em casa, deitadinho, todo enrolado, como se estivesse com depressão. Não vou pro bar, não namoro, não faço nada. Aí, passa um tempinho e acontece alguma coisa boa pra mim. Jogo minha rede e vem um bofe bom, ganho um dinheiro extra no bicho, encontro amigos de muito tempo, festas”, me disse.

A tática da mistura funciona assim: está em uma fase de muitos problemas, daquelas que o poeta Leminski falou que andam de mãos dadas? Força uma alegria no meio. Dê uma festa, saia de casa, force gargalhadas. A dose doce, por menor que seja, se espalha na amarga.

Quando as pessoas próximas souberam da partida de Valmir, foi uma comoção geral. Os coroas mais rústicos dos bares da região choraram. As mães de família, conservadoras, sofreram com a falta do homem que comemorou um título do Botafogo de calcinha vermelha e chapéu de Carmen Miranda, dançando livremente pelas ruas de Curicica.

Tenho certeza que Valmir está feliz com seu Botafogo e sua Viradouro. E continha em nós. Sempre. Alguém que sabe enganar a vida nunca morre.