Sátira conveniente e implacável

Difícil dimensionar o Grupo Pombas Urbanas, com mais de trinta anos de trajetória, experiências de sobra, o que fica perceptível ao assistir a “Era uma vez um rei”. Que belo espetáculo! Um verdadeiro encanto para aqueles que admiram um bom teatro. Os integrantes do grupo são completos e eficientes na arte de representar. Os belíssimos artistas são festivos, nota-se em poucos minutos de audiovisual. O elenco leva os espectadores às ruas.  Esse é o cenário, a rua, realidade de muitos, infelizmente.

“Na trama interpretada por Adriano Mauriz, Marcelo Palmares, Paulo Carvalho Jr. e Ricardo Big, quatro homens em situação de rua se encontram em um final de tarde. Com latas, plásticos e papelões, eles criam o espaço onde vivem, descansam e fazem festa. De suas relações nasce uma brincadeira na qual cada um deles será rei, depois presidente e, em seguida, ditador. O jogo humano e imaginativo torna-se intenso e eles saem da realidade em que vivem para representar as relações de poder da mesma sociedade que os marginaliza.” Essa é a sinopse de um grupo periférico, que merece uma salva de palmas! Em um momento que todos se encontram tão cansados, minutos de leveza são muito bem-vindos, e esse é o caso do espetáculo on-line transmitido pela plataforma do Youtube, no canal do Sesc ao vivo.

A palhaçaria é bem representada, nuances dela estão no texto e também, em um dos figurinos. Texto contemporâneo, cheio de expertises, fala tanto que fica difícil descrevê-lo. O dramaturgo, brinca demais, transforma tudo em sátira, o que a essa altura está valendo. Mendigos viram reis!

Ao menos “o de cima sobe e o debaixo desce” deixa de ser a máxima, nesse grandioso país que insiste em ser pequeno!

Musicalidade faz parte desse show, a todo momento sons, percussões, instrumentos de sopro se fazem presentes. A bufonaria reina por meio das indumentárias, tudo muito saltimbancos. Pobres, porém, com toda a liberdade que os artistas têm! Quantas mensagens “implícitas” e necessárias, fazem qualquer “esquerdista” vibrar, afinal os deboches são dignos de aplausos. Deixando claro, que todos estão no limite!

Músicas rimadas, melódicas, cadenciadas, tudo ali orquestrado e ao vivo! ” E se você brincar direitinho, vou te nomear como primeiro-ministro!” O teatro sendo político, perfeito como deve ser! Que delícia, o palco, o movimento! Cada ator carrega suas atuações livremente, nem parece ter texto, de tão bem feito. Lembra improviso, perfeito!

Os movimentos de cada um, suas expressões são, deliberadamente, naturais.

Impossível não se apaixonar por cada detalhe, por cada som, por cada narrativa, por cada frase do texto, por cada movimento no cenário, com objetos úteis. Eles são o sol, o vento de boas-novas vindas pelos risos, apresentam um Brasil avacalhado, numa chacota muito bem elaborada, autêntica!

E se o personagem se chama “Sucata”, e se o espetáculo tem desdobramentos políticos, logo é possível ligar os nomes aos fatos…

E vamos construir chafariz com álcool em gel, vamos fazer de um carrinho de lixo uma rampa presidencial, vamos mudar a Constituição e vamos falar de tortura! Contemporaneidade! Possível ver Shakeaspeare e Molière adorando essa obra! Vale mencionar a força desse pessoal, desse teatro nascido na periferia… Eles simplesmente chancelam a tríade cênica: texto, ator e público.

E é tudo reaproveitável, todo lixo reaproveitado, quanta excelência! Para os doutores cênicos essa obra deveria ser uma bússola para mudanças, principalmente ambientais, depois da saída de um ministro, que adorava “abrir a porteira para a boiada passar!”

Qualquer ser aplaude, qualquer ser, que arbitra por um mundo melhor, reconhece a grandeza dessa companhia teatral! Muito aplausos… eles merecem!

Este espaço não passaria por uma obra como essa, sem registrá-la, muito menos sem agradecer à curadoria do Sesc por trazer essa obra e esses artistas brasileiros, que mesmo contra a maré e todas as dificuldades, mostram o valor das periferias, reduto cultural e artístico. Com excelência, o Grupo Pombas Urbanas faz intelectuais e não intelectuais se dobrarem de rir, com tamanha façanha!

ERA UMA VEZ UM REI

Grupo Pombas Urbanas (SP)

On-line e gratuito

Temporada até dezembro

Sempre disponível no último final de semana de cada mês

Classificação 14 anos

Assista: https://www.youtube.com/watch?v=t4xtyZtG1lQ

O vídeo só estará disponível nas datas agendadas acima.

 FICHA TÉCNICA

Texto: Oscar Castro

Direção: Grupo Pombas Urbanas

Elenco: Adriano Mauriz, Marcelo Palmares, Paulo Carvalho Jr. e Ricardo Big

Cenografia: Alexandre Souza

Figurino: Carlos Alberto Gardin

Assistente de figurino: Fernanda Versolato

Sonoplastia: Joilson Santos

Direção musical: Grupo Pombas Urbanas e Giovanni Di Ganzá

Músicas: “Molambos Molhados”, de Ray Lima (abertura), Tema Instrumental de Juliana Flory (abertura) e “Vou Catando a Vida”, de Natali Santos (samba do início)