Numa noite de domingo, chegando com a família de uma roda de samba em que toquei, ouvimos, ao sair do carro, um miado, fininho, vindo de dentro da garagem. Procuramos um pouco, até chegarmos a uma caminhonete, que trazia em suas entranhas um filhotinho cinzento de gato. Ele chamava pela mãe e não vinha até nós, de jeito nenhum. Estava entre a caçamba e o chassis, quando tentávamos pegá-lo, ele fugia. Se equilibrava muito bem. Andando rápido entre as peças da suspensão e outras que ficam por baixo do carro. Montamos um verdadeiro esquema de salvamento, e nada.
No dia seguinte, minha filha voltou ao local, junto com outras crianças do prédio e conseguiram resgatar o bichano. Como prêmio, pela bravura, ou pela sujeira da roupa e dos joelhos, ela foi agraciada, pelo dono do carro, com o pequeno felino. Que havia viajado, naquelas condições, de seu sítio em Araruama até o Grajaú.
Como o bichinho não parava de miar, o apelidamos de Tagarela. Quando criança, eu havia tido um siamês, chamado Príncipe. Agora, há cinco meses, voltei a conviver com esse animal fantástico. Quando chegou era tão pequeno que ainda andava desengonçado, mas, hoje, é um ninja disfarçado de vira-lata.
Essa sagacidade e curiosidade que o leva a, literalmente, subir pelas paredes ou entrar num sofá que não tem entrada, entre outras peripécias, me levaram a traçar mais um paralelo, agora entre gatos e gênios. Vivo procurando a melhor analogia, para quando começa aquela discussão sobre o “dom” — the gift.
Todo gato é ninja. Uns mais, outros menos, alguns perderam o condicionamento por causa das condições em que vivem. São produtos do meio, como Vygotsky gostaria que eu afirmasse. Porém, há um aparato genético que lhes dá a condição de ser ninja — a todos — como nos diria Piaget. As exceções existem, claro: Problemas genéticos, congênitos ou de enfermidades, durante a vida. O gênio, quando nasce, é uma criança normal, um livro em branco. Cheio de potencialidades, como todos nós. A diferença, é que ele, em especial, entra em contato, muito precocemente, com algo que tem muita afinidade, gerando um círculo virtuoso de interesse, crescimento e saciedade, que chamamos de dom.
O dom, essa facilidade perceptiva e/ou motora, fruto daquela afinidade que se desenvolve e amadurece, faz com que este indivíduo esteja em franco contato com seu instinto, numa espiral constante de ascensão, enquanto viver ou lhe for permitido, assim como a fauna na natureza. Se incentivada, esta criança pode, até, sobrepujar tudo o que estamos habituados a ver.
À soma das condições biológicas e contextuais de sua época, cultura e família, dá-se o nome de vocação. É ela que permite ao gênio, apesar de toda facilidade e inclinação para o assunto, sentir-se profundamente feliz e, também, ansioso para frequentar a esperada aula, às sete da manhã de um domingo chuvoso.
A menina prodígio, Alma Deutscher, desde pequena se interessa pela música, pede ao pai que a ensine, estuda sem que ninguém peça, movida, apenas, pela sua própria vontade, algo que vem de dentro. É a sua brincadeira preferida, onde transborda realização, afeto e felicidade.
A linda inglesinha que, em fevereiro, acabou de completar 13 anos, toca piano desde os três e violino desde os quatro, compõe sinfonias, óperas e se apresenta em concertos profissionais. Apesar de ser considerada a reencarnação de Mozart, diz: “Eu não quero ser um segundo Mozart, quero ser a primeira Alma.”
Ela tem razão! Seria uma injustiça com o quanto ela estuda e trabalha, dizer que ela é boa porque nasceu com um dom ou porque é reencarnação de alguém. Essa visão que nos rodeia, é reducionista demais e tira o mérito de quem, apesar de ter vocação, não optou por gozar, sem antes trabalhar para merecer.
Apesar de conseguir fazer qualquer coisa, pois, o ser humano é capaz e, também, programado para aprender, não ter a sensação de realização, tem sido uma das grandes frustrações da atualidade. Uns tendem à música, outros à natação ou história e, assim, cada um deveria se perceber parte de uma função.
Nossa busca deve ser por esta sintonia. E, para isso, precisamos ouvir nossos verdadeiros desejos e respeitá-los, independente do que, socialmente, é encorajado. Antes, teríamos que ter um desempenho acima da média, para sobreviver à natureza, hoje, vivendo em sociedade, permanecemos na angústia de sobreviver, mas, a outros de nós e a nós mesmos.
Como disse o sábio Cherokee: “Todos temos, no peito, dois lobos, o que alimentamos com mais frequência, é o que se torna mais forte.”
Até a próxima!