Passa boi passa a boiada boa

A dramaturgia está além do que se pode imaginar, ela faz um artista sangrar, seus sentimentos se movem como ondas numa ressaca, até parir uma espécie de pergaminho sagrado, que envolve o ser humano com importantíssimas análises críticas, resultantes em desenvolvimento e mudanças comportamentais dele mesmo.

“História sobre empatia entre seres vivos, quando um homem sem afetos cria laços de amor com um boi. Tratador e capataz de matadouro, que se encontra numa encruzilhada ao criar grande relação de amizade e afeto com o boi Chico, nascido por suas mãos e criado por ele como um filho.” (Sinopse)

Vandré Silveira teve a ideia e a levou para a dramaturga Daniela Pereira de Carvalho, que mais uma vez, foi majestosa em um texto perfeitamente costurado, com referências artísticas de mais alto valor, o que sabemos ser intrínseco dessa artista.

Daniela apresentou em seus dois últimos trabalhos, “Realpolitik” e “Uma Revolução dos Bichos”, dramaturgias riquíssimas, rendidas a temas inteligentes, politizados e cheios de emoção, que levam à plateia ao delírio.

A dramaturga é reconhecida, traz em sua bagagem os maiores prêmios do Teatro brasileiro e para escrever sobre ela é preciso cuidado, afinal, ela é dona das interpretações e toda palavra para ela tem peso certo. Nenhuma frase é uma simples oração, mais que isso, ela mergulha na coerência ao ler e reescrever. E é impossível fazer uma crítica sobre a “Hora do Boi” sem mencionar a artista em questão.

Daniela inicia sobra obra textual com Zé Ramalho e segue por seus versos destrinchando cada estrofe, com ousadia e perspicácia. É preciso entender de sentimentos e valorizar a Cultura, Daniela carrega ótimo gosto ao mencionar “Admirável Gado Novo”, a icônica e atemporal canção de Zé Ramalho.

“Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber

E ter que demonstrar sua coragem
A margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer

Eh, oh, oh, vida de gado
Povo marcado, eh!
Povo feliz!” (Zé Ramalho)

Se a história retrata um boi e um homem, o início da obra começa despertando nos espectadores interesse, com notas de curiosidade, pois todos querem saber onde e como tudo vai acabar. Não se trata somente de espectadores, mas também de apreciadores da boa Cultura, Cultura de excelência.

Os auroques são mencionados, espécie de bovino selvagem extinto. Incrível esse olhar, mencionar uma espécie extinta, muita sapiência registrar no texto a existência dessa raça. Se considerarmos a arte rupestre, que deixou em evidência o homem e os animais desde seus primórdios, registrados em paredes, tetos e outras superfícies de cavernas e abrigos rochosos, ou mesmo sobre superfícies rochosas ao ar livre, entenderemos ainda mais a intensidade e a profundidade da dramaturgia.

A direção é de André Paes Leme. O diretor tem uma obra rodando o Brasil, “A Hora da Estrela”, uma verdadeira obra-prima. Quem conhece André, sabe que nenhum projeto é concebido por ele, sem que ele se apaixone ou acredite na proposta. Sendo assim, já dá para perceber que “A Hora do Boi” já está agregada a valores éticos, apreciados pelos profissionais que a montaram.

A ficha técnica desse espetáculo é constituída por artistas de peso do Teatro. Toni Rodrigues assina a direção de movimento ao lado de Paula Aguaes. Claro, que tudo está impecável!

A cenografia, apresenta umas cabeças de bois, uma ossada intrigante ao lado direito do artista. Simples e elegante. Carlos Alberto Nunes abraçou a ideia, já que se fala de abate, por que não as ossadas? É fato, quem sabe fazer faz, com pouco, ou com muito, e Carlos Alberto executa com olhar sábio, é o que se pode afirmar desse trabalho artístico. O figurino, também assinado por ele, mais uma vez, com simplicidade e pouca cor, mostra que ele entendeu, que o texto é quem deverá falar ao público. Salve!

E o texto volta a boca de Vandré Silveira, e seus olhos traduzem verdades, sentimentos, reconhecimento da vida, seja do ser racional ou irracional, uma tempestade de percepções que elevam as palavras escritas por Daniela.

Quando o verdadeiro dono do boi convoca Francisco para abater o animal por ele criado, a dor chega em nós espectadores também. Somos donos de animais domésticos e entendemos esse amor, o único sentimento capaz de revolucionar o mundo, segundo São Francisco de Assis. O santo também está presente na peça, mais uma perspicácia da dramaturga!

A voz “em off” é de Claudio Gabriel, o que ficou bem no espetáculo. Algo xucro, sem sentimento, grosseiro e claro, capitalista. Claudio foi convidado por Caio Bucker, que assume a direção de produção, outro fazedor de Teatro, atuante na Cultura do Estado do Rio de Janeiro.

E mais uma vez, o texto volta. Quando se declama uma estrofe da música “Cálice” de Chico Buarque, a plateia fica atenta. “Afasta de mim esse cálice” é a frase que o abatedor usa para não abater seu “filho” boi! E assim segue um trabalho bonito, que faz repensar a vida, seus reais valores. Vai muito além de ideias como veganismo ou proteção aos animais, apresenta o amor nas mais diversas formas. E não é só uma relação ficcional, em plataformas virtuais, é possível ver vídeos de crianças e bezerros, do nascimento a juventude, cheios de amor.

O artista Vandré olha com a alma, atua com desejo de fazer certo. Seu sentimento por esse trabalho está além do palpável. Estar nesse palco, para esse ator, tem um valor imensurável, poucos sabem. O solista entrou de cabeça no que acreditou, mergulhou no seu projeto, sem patrocínio, sem incentivo, mas com garra, o espetáculo acontece dentro do teatro Poeira. Em cada cena muita competência, isso é indiscutível.

Não percam a oportunidade de assistir a um artista que te leva até um pasto verde, com a sua boiada, e grita: êêêê boi! Que abram essas porteiras, porque é nessa que queremos entrar!

FICHA TÉCNICA

Texto: Daniela Pereira de Carvalho

Idealização e Atuação: Vandré Silveira

Direção: André Paes Leme

Direção de Movimento: Toni Rodrigues e Paula Aguas

Assistência de Direção: Toni Rodrigues

Cenografia e Figurinos: Carlos Alberto Nunes

Cenógrafa e Figurinista assistente: Arlete Rua

Confecção de figurino: Ateliê Bruta Flor

Iluminação: Renato Machado e Anderson Ratto

Trilha Sonora: Lucas de Paiva

Preparação Vocal: Claudia Elizeu

Design Gráfico: Raquel Alvarenga

Fotografias: Lorena Zschaber

Direção de Produção: Caio Bucker

Assistência de Produção e Operação de Som: Aline Monteiro

Operação de Luz: Bruno Aragão

Voz em off: Claudio Gabriel

Gestão de Mídia e Marketing Cultural: Rodrigo Medeiros (R+Marketing)

Contadores: Cissa Freitas e Francisco Júnior

Assessoria de Imprensa: Passarim Comunicação | Silvana Espírito Santo e Juliana Feltz

Assessoria Jurídica: BMN Advogados

Realização: Bucker Produções Artísticas e Vandré Silveira

A HORA DO BOI — COM VANDRÉ SILVEIRA

Temporada até 26/2

Teatro Poeirinha

Rua São João Batista, 104, Botafogo

Quinta a domingo

Quintas, sextas e sábados às 21h; Domingos às 19h

(não terão sessões na semana do carnaval – dias 16, 17, 18 e 19/02)

Ingressos R$ 60 e R$ 30 (meia)

Vendas na Sympla e na bilheteria

Duração 60 minutos

Classificação 14 anos

Informações (21) 2537-8053