No dia de Fluminense e Olimpia do Paraguai, no Maracanã, eu vi duas histórias que me colocaram para pensar. Mas não me confundam, não quero colocar ninguém para pensar com esta crônica. Crônica é igual futebol: é para sentir.
Contudo, como eu pensei, vou escrever sobre as narrativas das quais fui testemunha ocular. A primeira foi um senhor, que disse ter tido um AVC anos antes e tinha dificuldades para andar e falar. Muitas dificuldades. Ele caminhou uns três quilômetros da saída do estádio até o ponto de ônibus, onde pegaria uma condução para Niterói.
Em uma parte do caminho que o senhor fez, ele passou pelo bar onde eu estava com meus amigos, comemorando a vitória tricolor. O ajudamos a fazer um trecho da caminhada e mostramos preocupação com a situação dele. Ir para Niterói sozinho com toda aquela dificuldade deixou todos nós em alerta. Levando todas as nossa angústia, o senhor foi embora.
Tentamos falar com algum familiar dele, mas ele disse que não queria isso, porque os parentes não poderiam saber que ele estava indo para o Maracanã sozinho naquelas condições de saúde. Acionamos policiais que estavam próximos, mas disseram que não poderiam ajudar.
Quando ele saiu, deixou preocupações e um questionamento entre nós. Ficamos com medo que algo acontecesse com ele nessa viagem solo. Pode ser que ele também tenha medo, no entanto, o amor pelo time do coração vence. Não sei se isso é bonito ou problemático. Ou seria os dois? Talvez seja um pouco de tudo e mais coisas além, como a vida costuma ser.
Passada a passagem do senhor que foi para Niterói, peguei meu caminho de casa e o motorista que me levou tinha acabado de sofrer um sequestro relâmpago. Um casal entrou no carro dele e solicitou uma corrida, por fora do aplicativo, para São Gonçalo. Um pouco depois da partida, entraram mais dois caras. O casal desceu e a dupla foi ameaçando o motorista até chegarem numa rua escura, já do outro lado da ponte Rio-Niterói.
Durante a viagem, os dois caras disseram que o motorista parecia um policial que havia prendido os dois anos antes. O motorista, um pacato trabalhador, aos prantos, com medo de morrer, só conseguiu se livrar da situação quando mostrou aos homens vídeos, pelo celular, do seu filho de 33 anos, que teve meningite na infância e vive acamado até hoje.
O motorista (não vou falar o nome para não expor ninguém) chegou ainda tremendo para iniciar a viagem comigo do Maracanã até Jacarepaguá. Falei com ele que não precisava iniciar a corrida de imediato, conversamos um pouco, ele se acalmou e seguimos. No caminho, ele me falou mais sobre a vida dele.
Estudou até a terceira série, trabalhou em fábrica de carvão, serviu as forças armadas por um ano quando jovem, foi camelô. Disse que o melhor emprego da vida foi dirigir carro de aplicativo, pois conseguia ganhar um pouco mais para bancar os muitos gastos com a saúde do filho e o restante de sua família, que vive em Realengo, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.
Aliás, ele contou que prefere trabalhar dirigindo por perto da área onde mora, pois não se sente à vontade em “lugar de bacana” – incluiu Maracanã e Jacarepaguá nessa lista de locais. Disse que já sofreu preconceito de passageiros por não se vestir bem e por “falar errado”.
Mostrou para mim umas três vezes o tênis e uma camisa gola polo que havia ganhado do dono do carro que ele aluga para trabalhar. Ao total foram seis blusas, uma calça e quatro bermudas. Ele separou metade para dirigir no dia-dia e metade para ir à igreja, que é o único passeio que faz, segundo ele.
Antes desses presentes, ele disse que só tinha um blusão já com uns furos e uma velha calça jeans para trabalhar e ir aos cultos de domingo. Falei para ele que eu tinha umas camisas novas para dar para ele. Ele disse que não precisava. “Mais do que eu tenho agora é olho grande, meu filho”.
Também recusou meus convites para comer alguma coisa, beber uma água, respirar um pouco depois do susto que havia passado. “Tenho que trabalhar, meu filho, é muita coisa para pagar, mas agradeço de coração”.
Toda vez que falava do filho, ele exalava um carinho maior que o medo que teve de morrer horas antes. Amor é isso mesmo, é vencer o medo. Em qualquer história é isso. Agora, se isso é bom ou ruim, não sei dizer. É sempre melhor sentir para saber.