Um ótimo programa na Netflix para quem gosta de filmes de época com intrigas amorosas em tempos de quarentena
Há quem goste, mas há que não curta “filmes de vestidão” (como um crítico de cinema apelidou filmes de época em que as mulheres usam aquelas vestimentas com saias balofas devido às armações que colocavam por baixo dos panos). Mas tais filmes não chegam a formar um “subgênero” e, independente da época em que se situa a história apresentada, gente como Luchino Visconti podia realizar obras-primas, fosse em ambientes luxuosos (O Leopardo) ou em ambientes miseráveis (Rocco e seus irmãos).
O diretor francês Emmanuel Mouret não é nenhum Visconti, mas parece ter aprendido muita coisa em obras de outros diretores que não tinham medo de planos-sequências, exigindo dos atores diálogos mais ou menos extensos bem decorados e interpretados, além de pedirem um pouco de calma por parte dos espectadores para que o enredo evolua até desenvolver o arco dramático central – que também terá um desenvolvimento meticuloso.
Para isso, Mouret contou com uma dupla central de intérpretes afiada. Cécile de France, além da beleza mais madura, está ótima, especialmente no terço inicial quando precisa convencer como uma marquesa experiente que poderá (ou não) se deixar levar pela lábia de um conhecido sedutor libertino que parece estar mudado no modo de se comportar em relação às mulheres. Menos conhecido por aqui, Edouard Baer chama a atenção nos terço médio e final quando precisa convencer como um libertino sedutor que se perde de amores (ou por tesão reprimido) por uma mocinha que mais parece uma Vênus de Boticelli (a belíssima Alice Isaaz, adequadamente contida tal como sua personagem demanda). Ótimas coadjuvantes são Laure Calamy como a grande amiga da personagem central vivida por Cécile De France e Natalia Dontcheva como a mãe de Alice Isaaz.
Tudo se passa em jardins com vegetação esplendorosa e interiores de enorme bom gosto. Mas o filme não é feito apenas de belezas superficiais, afinal, o roteiro é inspirado por uma passagem de “Jacques, o Fatalista”, de Diderot, e aborda questões morais ainda pertinentes nas relações amorosas/sexuais de qualquer época.
O título brasileiro inadequado entrega parte (mas não totalmente) o que vai acontecer para quem não conhece a passagem de Diderot ou uma outra versão deste mesmo tema em um clássico do cinema francês de Bresson, lembrando que o roteiro – assinado pelo diretor Mouret – é anunciado como “livremente inspirado” no original literário. Será curioso descobrir as semelhanças e diferenças entre as várias versões.
Indicado a vários Césars – o ‘Oscar’ francês – entregues em 2019 nas categorias de atriz, ator, roteiro adaptado, fotografia, cenários e vestuário, apenas neste último aspecto o filme foi premiado. Isso poderia dar a impressão de que não passa de um “filme de vestidão”, mas não é assim. Realmente, a tonalidade das roupas de Cécile de France em sintonia com algumas cores dos ambientes é um senhor destaque estético – e a fotografia capta isto muito bem, tanto quanto é eficiente nas tomadas ao ar livre; mas os intérpretes e o ótimo modo de desenvolver a história levam o filme a um patamar acima de cuidados de produção e qualidades técnicas. Se não chega à perfeição das adaptações cinematográficas de Stephen Frears ou de Milos Forman para o romance epistolar de “Laclos”, “Ligações Perigosas” (publicado 14 anos antes de “Jacques, o fatalista”), “Mademoiselle de Joncquières” (título original) ou Lady J (título internacional) é um ótimo programa na Netflix para quem gosta de filmes com intrigas de época em tempos de quarentena.
Prestem atenção ao modo como a amiga quebra o silêncio da personagem principal e como esta repete a tática com seu amante para sondar os sentimentos dele. Daí para a frente, a ferida narcísica dominará tudo.