Quando chegou a Portugal há oito anos para cursar o mestrado em música, Luca Argel não tinha familiaridade com o samba. Assim como João Nogueira cantou os versos de Paulo César Pinheiro – “Ninguém faz samba só porque prefere/Força no mundo nenhuma interfere/Sobre o poder da criação” –, o cantor e compositor carioca recebeu o chamado.
“Aqui há muita curiosidade dos portugueses pela música brasileira, e pelo samba em particular. Isso fez com que eu me aprofundasse mais no gênero”, conta o músico que integra hoje trabalhos nos grupos Samba Sem Fronteiras e Orquestra Bamba Social, com quem divide a missão de difundir a nossa sonoridade além-mar. Também apresenta um programa de rádio dedicado à música brasileira, o Boi com Abóbora, numa rádio do Porto, cidade onde vive.
Depois do bom álbum autoral “Conversa de Fila” (2019), Argel prepara para fevereiro o lançamento de mais um disco com sambas. Trata-se de “Sambas de Guerrilha”. “O samba é, desde suas origens, um canto de resistência. Para explicar melhor aos portugueses seu significado para nós, montei um espetáculo com canções que contam não só a história do gênero, mas também a história brasileira e as lutas de nosso povo”, explica.
O trabalho já teve duas faixas apresentadas nas plataformas digitais, “Almirante Negro” – a versão original de “Mestre Sala dos Mares” (João Bosco e Aldir Blanc), sem os cortes impostos pela censura. “Até onde sei, não existe um registro em estúdio desta versão original. Mas descobri na internet uma interpretação de Elis Regina num show no México”, conta Argel, ao referir-se a este clássico da MPB que canta o episódio da Revolta da Chibata. Assista ao clipe, com animação de Anderson Cruz e a leitura de um trecho da carta de reivindicações dos marinheiros revoltosos contra os maus tratos praticados pela oficialidade:
A outra faixa é “Pesadelo” (Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós), que, curiosamente, não sofreu crivo da censura, embora trate justamente do cerceamento às liberdades, com versos como “Você corta um verso, eu escrevo outro/Você me prende vivo, eu escapo morto/De repente olha eu de novo/Perturbando a paz, exigindo troco”. Gravada originalmente pelo MPB4, a música foi adotada pelos integrantes da Guerrilha do Araguaia como uma espécie de hino informal. “Um dos compositores mais visados pelos censores era Paulo César Pinheiro, cujas letras eram constantemente vetadas”, explica Luca. “Um dia ele cansou e resolveu ‘chutar o balde’”, comenta o intérprete.
“Mesmo tendo tido a sorte de escapar do corte dos censores, por pura distração, num primeiro momento, poucas rádios tiveram a coragem de tocá-la. Isso porque o teor era claramente desafiador à ditadura”, lembra Luca Argel. No entanto, o breve acesso que se teve à música, na época, foi o suficiente para que ela chegasse aos confins do país e caísse no gosto dos guerrilheiros encravados em plena selva amazônica.
“Pesadelo” teve o videoclipe gravado na Espanha, com direção da cineasta Bea Saiáns, e mostra pessoas que se comunicam por códigos secretos numa sociedade vigiada, resgatando o clima de clandestinidade. As imagens com linguagem visual apurada acompanham esta regravação, em arranjo completamente diferente da gravação original. Assista aqui: