Nos últimos dias fui tomado pelo impulso de ouvir muitas vezes um álbum de um ano de vida de uma cantora e compositora debutante na carreira solo. Falo de “Soltar os Cavalos”, um exercício libertário da mineira Julia Branco. Emoldurada por sonoridades distintas e sem rotulagem, sua poética intimista trata do universo feminino, seja no arrebatamento de abrir as estrebarias da alma ou no sutil gesto do acolhimento. Os antagônicos sentimentos da coragem e do medo revelam-se em versos como “Sou forte/sou grande/sou do tamanho do medo” logo na expressiva interpretação quase declamada de Julia, que também é atriz, na faixa “Sou Forte”. Júlia Branco é uma das melhores autoras de sua geração e que merece ser ouvida.
Com produção do requisitado Chico Neves, que assinou álbuns do Rappa, Paralamas, Arnaldo Antunes e Nando Reis, entre outros, Julia aventurou-se a soltar os corcéis de sua criatividade. O fio condutor do trabalho é uma narrativa feminina, voltada para o turbilhão de sentimentos e hormônios que movem as mulheres e, obviamente, tecem os próprios destinos e desígnios do mundo, já que medos, desejos e tudo que nos rege não passa, necessariamente, por gênero. “Uma coisa que o disco fala muito é do acolhimento por conta da vulnerabilidade e isso está relacionado a nossa dimensão humana. Pertence a mulheres, homens, a todos”, observa Julia.
A vulnerabilidade do ser humano em geral tem seu lugar, por exemplo, em “Coisas” (parceria com Chico Neves, que introduziu sobre o texto uma base eletrônica, sonoplastia e a voz de Julia em delay), uma canção-poema que aborda coisas que Julia não consegue fazer ou ser. Ao falar abertamente de suas fobias, frustrações e desejos, a artista se desnuda. Expor a própria fragilidade é uma atitude deliberadamente revolucionária.
“Adoro o assunto do fracasso, adoro que a gente possa falar sobre o fato da gente ser humano e tropeçar, errar, ser meio besta. As pessoas se identificam muito com aquilo. Acredito que a gente precisa se empoderar assumindo nossas fraquezas e limites. As redes sociais e o mundo, de algum jeito, nos levam a achar que a gente é capaz de tudo, que todo mundo é muito foda e que não deve mostrar seu lado frágil”, comenta.
Com 11 faixas, “Soltar os Cavalos” conta com participações de Letícia Novaes (Letrux) e do percussionista Paulo Santos (Uakti). Letrux divide com Julia os vocais da lírica 30 Anos (“tô com uma vontade louca/uma vontade enorme/de ser tudo/de dormir/no escuro/de rastejar, de me perder/no ar”).
Vivendo na ponte aérea entre BH e São Paulo, Julia não interrompe o processo criativo e segue compondo, mas ainda não sente o desejo de desapear dos possantes cavalos que libertou.
Foto Florene Zyad