Inferno real queima todo dia

Ao entrar na sala ouve-se uma música instrumental acolhedora, um violino soa aos ouvidos, até que comece o audiovisual. Mas não se trata de qualquer música, trata-se de Vivaldi e a sua inconfundível “As Quatro Estações” preludiando a obra-prima que está por vir.

E a obra se inicia com uma narrativa fortíssima. Explicando um pouco do que será a jornada ao Inferno. Uma atriz se deixa tomar por uma retórica real, contando suas trajetórias como negra.

Excelente jogral de rimas feito por cinco atores, com textos na ponta língua. Um canto se mistura a um grito. Uma filmagem de excelência abre-se diante dos olhos.

Aline Santini — não é a primeira vez que a profissional é mencionada nesta coluna — o desenho de luz do espetáculo é simplesmente perfeito! Também perfeita harmonia com o texto. Um daqueles casamentos invejáveis. Nem mais, nem menos, equilíbrio e precisão. Equilíbrio, pois ao se falar de uma penitenciária, seria impossível uma iluminação longe do sombrio. A penumbra e as sombras brindam as cenas.

Ao mudar de cena, a iluminação parece sorrir e abraça cada artista. Quando a cortina do palco italiano se abre é possível os espectadores encontrarem os detentos de 1938. O motivo dessa dramaturgia existir, criada pelas mãos de Tennesse Willians, aos 27 anos. A dramaturgia já foi montada em outros países e com muito estilo é remontada pela Cia. Triptal de Teatro, que corajosamente a produziu em nível relevante. Algo europeu paira no ar, tudo parece lembrar os grandes nomes da história do Teatro mundial.

Os artistas deixam de ser estrelas e assumem a posição de cometas, porém eles têm brilho próprio, e reluzem a olho nu. Não precisa ser conhecedor de Teatro para perceber o profissionalismo de cada um deles, e que fique claro, são 39 profissionais atuando juntos, sem sutileza, mas com a força de um rinoceronte.

Os movimentos e não movimentos da coreógrafa Luiza Módolo são arrebatadores, é estarrecedor! Tudo bem pensado. Os detentos parecem ter seus espaços milimetricamente analisados. Impossível citar nomes, todos são imensos e em nada previsíveis em seus personagens, são surpresas, diante de seus textos e movimentos.

Para um espetáculo premiadíssimo não poderia ser diferente do que se apresenta. A cidade de São Paulo deve se orgulhar por ter artistas que não se limitam, muito ao contrário, vestem as asas da liberdade e com coragem montam um espetáculo dessa magnitude, um orgulho para as Artes Cênicas brasileiras.

O figurino é de Marichilene, profissional sempre grandiosa, embasada e estudada. A última vez que passou por aqui, assinava o figurino de “Condomínio Viesnec”, um espetáculo tão forte quanto Inferno. Marichilene tem olhar icônico, a destreza de saber colorir os personagens. Por dar-lhes indumentárias satisfatórias aos olhos de quem assiste.

E as caracterizações? Divinais, constroem personagens congruentes. Incrível. O cenário da dupla André Garolli e Cesar Rezende não dispensa mérito e reconhecimento.

Uma sensação de celebração artística paira sobre eles, como não podia deixar de ser, pois a Cia Triptal de Teatro completa trinta anos de estrada e merecidamente comemora mostrando à plateia sua maturidade cênica, em todas as esferas.

A força da pandemia não conseguiu ser maior que a força do Teatro, a nova linguagem chegou para ficar e veio impactando quem se dispôs a assistir aos espetáculos virtuais.

E quanto ao texto, traduzido e revisado por Luis Marcio Arnaut com excelência, cabe honra ao mérito. Em uma hora e meia de espetáculo, não se nota o passar do tempo, a fluidez é legítima.

Por grandeza e expertise fazem a plateia rir, atenta às narrativas de cada personagem.

O machismo, o autoritarismo, as condições sub-humanas a que as pessoas são submetidas, as agressões dos que estão no poder… Qualquer cidadão brasileiro, que assiste ao espetáculo Inferno, fica na dúvida se a dramaturgia não foi tirada das páginas dos jornais de notícias de hoje. O Brasil, sua política suja, com presídios lotados, seus corruptos e corruptíveis, algo tão trivial no dia a dia dessa maltratada sociedade.

Mensagens explícitas, a dramaturgia apresenta gritos sociais como o Teatro sabe fazer. Nunca apolítico, sempre perseguido!

E chega o Funk, o Hip-hop, a cultura da periferia, dos “excluídos”, com percussões improvisadas (bem ensaiadas) com cadeiras, que também construíram celas em cena.

O motivo?

“Essa dramaturgia tem uma grande dose de horror, violência, sangue e morte. Ele nos mostra os problemas e as consequências de usarmos ações disciplinares arcaicas e brutais, e que infelizmente, ao relermos setenta anos depois, percebemos que pouca coisa mudou. É uma história verídica, que serviu para rever questões do sistema carcerário nos Estados Unidos e dos direitos humanos”, conta o diretor Garolli.

“A montagem retrata a atrocidade que realmente ocorreu em uma prisão em Holmesburg, Pennsylvania, em 1938. Um grupo de 25 presos realizou uma greve de fome e como punição foi trancado em uma cela fechada com vapor aquecido. Quatro deles morreram assados, e quando a notícia da brutalidade foi disseminada por meio dos jornais, a opinião pública americana ficou indignada. O texto de Tennessee Williams foi descoberto somente nos anos 90.” (Sinopse)

O que falar da direção de André?

“Antes da pandemia, a montagem teve temporadas no Oficina Cultural Oswald de Andrade, Teatro João Caetano, Viga Espaço Cênico, Cia da Revista, Teatro Flávio Império, CEU’s, Escola Estadual Albino César e chegou atingir um público estimado de 18.300 pessoas. A peça foi destaque em diversas premiações: Ganhou o prêmio de melhor estreia de 2019 pelo Guia da Folha de S. Paulo; indicado por “Melhor Direção” pelo Prêmio SHELL (André Garolli); recebeu 3 indicações pelo Prêmio Aplauso Brasil – “Melhor Espetáculo de Grupo”, “Melhor Arquitetura Cênica” e “Melhor Ator” (Fabrício Pietro); venceu em 8 categorias do Prêmio Cenym – “Melhor Espetáculo”, “Melhor Direção” (André Garolli), “Melhor Elenco”, “Melhor Ator” (Fabrício Pietro), “Melhor Atriz Coadjuvante” (Camila dos Anjos), “Melhor Texto Adaptado” (Luis Marcio Arnout), “Melhor Direção de Arte” (André Garolli), Melhor Cenário (André Garolli).”

Isso basta?

Tudo que se assiste é inesquecível, impecável, dos 39 artistas em palco, todos são expressivos e necessários. Uma equipe glamourosa em sua essência cênica. Inferno foi a pandemia que atravessamos, porque o espetáculo Inferno, é a arte que atropela os covardes e divide até a medula de quem o assiste!

FICHA TÉCNICA

Inspirado em “Not About Nightingales”, de Tennessee Williams

Direção: André Garolli

Tradução-Revisão-Dramaturgia: Luis Marcio Arnaut

Assistente de Direção: Mônica Granndo

Elenco: Camila dos Anjos, Fernando Vieira, Fabrício Pietro, Athos Magno e Simone Rebequi. Atuadores Coral: Alan Recoba, Bella Santos, Bruza, Carol Rossi, Diego Versali, Eduardo Carrilho, Fábul Henrique, Felipe Cardoso, Fernanda Otaviano, Nando Medeiros, Gabriel Ornelas, Gabriela Carriel, Geovane de Oliveira, Guilherme Maia, Igor Constantinov, Ingrid Arruda, Isadora Maria, Jenifer Costa, Jhonatan Bào, Joel Rodrigues, Jorge Filho, Larissa Palacio, Lucas Guerini, Lucas Argüello, Luiza Módolo, Mayara Villalva, Rafael Custódio, Rafaelly Vianna, Roana Paglianno, Wes Machado

Desenho de Luz: Aline Santini

Cenografia: André Garolli e Cesar Rezende (Basquiat)

Figurino: Marichilene

Visagismo: Beto França

Direção Musical: Pax Bittar

Operador de Luz: Lucas Arguello

Operador de Som: Marcelo Rocha

Coreografia de Movimento: Luiza Módolo

Produção: Cia. Triptal de Teatro

Assistência de Produção Geral. Giulia Oliveira

Ensaios: Oficina Cultural Oswald Andrade

Foto Divulgação: Alexandre Inserra. Arte Design: Nando Medeiros e Carol Rossi

Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes

INFERNO UM INTERLÚDIO EXPRESSIONISTA

(Gravado no Teatro João Caetano de São Paulo em 2019)

On-line e gratuito

Temporada até 8/10

Todos os dias às 19h30

Duração 120 Minutos

Classificação 16 Anos

Retire seu ingressos: https://www.sympla.com.br/produtor/ciatriptaldeteatro