Falta fomento, mas sobra amor

Se falta fomento, transborda afeto. E é esse o segredo do solista e dramaturgo Hugo Andrade.

Um mergulho nos sentimentos define “Lia”. A obra aconteceu após a ‘mimesis corpórea’ do ator, que possibilita ao profissional cênico, trazer aos palcos a imitação de ações físicas e vocais de pessoas encontradas no cotidiano. Haja coragem para fazer da sua história, seu espetáculo. Assim fez o artista, com expertise e olhar poético. E isso o fez colher, não só indicações, mas prêmios inesperados.

“A estrada da vida pode ser longa e áspera. Faça-a mais longa e suave. Caminhando e cantando com as mãos cheias de sementes”.                                                                                                                                                                                   (Cora Coralina)

Hugo traz ao texto alguns pensamentos da contista e poetisa goiana. Vale lembrar, que Cora era do interior, e também trazia nas suas escritas, suas histórias pessoais.  A peça explode em cada um, de dentro para fora, resgatando memórias e o passado, tudo absolutamente legitimado. Todos se emocionam, é possível ver olhos lacrimejantes, perceber ninguém está sozinho nessa condição de nostalgia, saudade e emoção.

São homens e mulheres que encontram ali, sentimentos adormecidos, e os deixam fluir como um rio através dos olhos. “Lia” é um espetáculo que mexe com o íntimo dos seres humanos, não fere, apenas permite que todos façam viagens para dentro de si. Embarcar na memória é o convite feito pelo dramaturgo.

Em um momento tão difícil, devido à pandemia, “Lia” permite voltar a olhar para vida e apostar no amor. E, por que não?

Uma ficha técnica enxuta desperta curiosidade.

A direção de Tárlia Laranjeira parece suficiente. Ela e Hugo fizeram absolutamente tudo no espetáculo: cenário, figurino, iluminação — um desbunde para aqueles que ficam sentados à espera de apoio.

Coragem e amor definem, com toda certeza, esse espetáculo. Merecido enaltecer ambos, porque são grandes exemplos para o Teatro brasileiro. Da simplicidade ao luxo. Despertar sentimentos nos espectadores, já tão feridos e calejados, não é tarefa fácil, mas em determinado momento as dormências transformam-se em sensações, e esse obstáculo é rompido por Lia.

“É a história de uma senhora interiorana, que por meio de suas lembranças, narra sua vida ao lado de Lia, sua filha com paralisia cerebral. Entre rupturas e batalhas, o público compartilha o seu modo de vida sertanejo e se emociona com a aventura humana e sensível da personagem, movida pela fé e pelo amor aos seus”. (trecho da sinopse)

Diante da sinopse, segue a pergunta: Como não se deixar levar pelo amor?

É preciso haver muita humanidade para encarar essa avalanche de histórias que adentram no espectador sem pedir licença. Por intermédio das expressões corporais outros personagens surgem no palco, mesmo tratando-se de um monólogo.

As expressões faciais do ator encantam, ele olha nos olhos e fala com os olhos, é perceptível como o ele carrega uma intensa beleza indefinível neles, que brilham intensamente e com afetuosidade conquistam a todos.

O cenário e o figurino caipira carregam simplicidade, ambos assertivos. As músicas ajudam a obra a carimbar notoriedade. Panos se transformam em personagens, tudo com o máximo de delicadeza, o que provoca suspiros profundos na plateia.

Um texto extenso, mas nada cansativo, o tempo passa voando, a beleza é tamanha que é possível se banhar diversas vezes nas imensas ondas de ternura daquelas palavras.

O sotaque também colabora e transporta a essa viagem interiorana, sem contar o cheiro do café coado no pano. Tem varal com roupas penduradas, aspectos e hábitos do interior, tudo muito bem elaborado ajuda a compor essa história rural, bem recebida por todos os presentes. É possível ouvir da plateia, que o espetáculo já foi assistido outras vezes. O que é muito provável e você passará a entender, após o término do mesmo.

Teatro também é escuta e nesse espetáculo, a escuta é feita da alma e do coração. Saudades vivas e latejantes ressuscitam as sensações mais ternas do passado. Não sufoca, não amargura, “Lia” liberta o amor, ensina a sentir. Lia é a bússola, é o mapa, é o segredo de se viver bem consigo e com o próximo.

É o Teatro que vive e continuará de pé, pois conta com profissionais robustos e competentes como Hugo e Tárlia. 

LIA

Temporada até 29/8

Teatro Candido Mendes

Rua Joana Angélica, 63, Ipanema

Sextas e sábados, às 20h

Domingos, às 19h

Duração: 60 minutos

Classificação: Livre

Genero: Drama

FICHA TÉCNICA

Liarte Produções Artísticas

Texto e atuação: Hugo Andrade

Direção: Tárlia Laranjeiras

Sonoplastia: Johnny Guerra

Figurino: Hugo Andrade e Tárlia Laranjeira

Cenário: Hugo Andrade e Tárlia Laranjeira

Fotografias de Ana Clara Miranda