Tenho uma tarefa a fazer. Tarefa dada pelo coração. Pelo mais puro sentimento de amizade e fraternidade que me habita. Preciso falar sobre Marcelo Biar. Mas não quero sugerir que tenho qualquer lugar especial de fala, porque isso seria mentira.
Como é dito no filme “A culpa é das estrelas”, acredito que existam muitos infinitos. Que não apenas os números sejam infinitos, mas também as distâncias entre dois deles. Por isso, cada pequena história é infinita em seus desdobramentos.
Por isso, preciso falar desse cara. Mas não quero falar do professor de história, do título de mestrado ou doutorado. Nem quero falar do militante e visionário, que dizia que lutar pelos nossos direitos, nos dias de hoje, é ser revolucionário.
Não quero falar dos livros “Antônio Conselheiro: nem santo, nem pecador”, “Socialismo contra o vento e a favor da história” ou “Arquitetura da dominação: O Rio de Janeiro, seus presídios e seus presos”.
Tampouco, do meu colega colunista do Jornal Portal, com seus textos antenados e imprescindíveis. Que me apresentou ao disco “Sentinela” de Milton, de 1980, que entre outras pérolas, contém a música “Sueño con serpientes”, de Silvio Rodriguez, cantada junto com Mercedes Sosa, três artistas que ele amava.
Nem que no início desta faixa se recitava Bertolt Brecht, em espanhol: “Há homens que lutam um dia e são bons. Há outros que lutam um ano e são melhores. Há os que lutam muitos anos e são muito bons. E há os que lutam a vida inteira, esses são os imprescindíveis”.
Poderia dizer que lutou a vida inteira, fundou o Instituto por direitos e igualdade – o IDI. E que, por ser quem era, foi meu candidato a vereador em 2016 (50.180) e a deputado estadual em 2018 (50.150). Mas não é sobre isso que quero falar.
Nem sobre nossa semelhança em debochar de tudo e de nós mesmos, que nos impediu de ter uma única discussão partidária sequer. Pois éramos adeptos de dar com os ombros e dizer: “E aí?”. Que servia de resposta a qualquer manifestação babaca, política, artística, acadêmica, profissional ou pessoal.
Poderia falar dos seus contos, das poesias e das músicas. Das que fez sozinho ou com os parceiros: eu, Vicente Paschoal, Felipe Radicetti, Zé Alexandre, João Cantiber, Emanuel Freitas, Luis Otávio Souza, Beto Gaspari, Sandro…
Posso mostrar o texto que ele escreveu para o projeto “Baú de cordas”:
“Conheço o Marcelo China, conheço o Vicente Paschoal e conheço um outro cara chamado Marcelo Vicente China Paschoal. É uma espécie de primo deles e primo meu, que quando aparece, aparece com um pouquinho de cada um deles e um pouquinho de mim, mas também é um outro, um outro surpreendente, sempre surpreendente. E este cara, esta dupla precisa ser conhecida.”
Posso falar da admiração pelo parceiro com o qual fiz 14 canções e do carinho que tenho por todas as suas outras músicas, que também são minhas, afinal, vibramos com as conquistas e realizações de quem amamos.
Posso dizer que sinto uma enorme responsabilidade pela divulgação da sua obra e que fiz uma playlist no meu canal do YouTube, chamada “Semeando Biar” onde pretendo registrar, o máximo que puder, de suas canções.
Quero lembrar do meu amigo, tocando bongô nas violadas, fazendo caldo verde com paio (que é muito mais gostoso que calabresa, conforme me ensinou). Um macarrão com um “fio” de azeite pra massa não grudar.
As gravações na mesa TASCAM, no apartamento 402 da rua Visconde de Santa Isabel, 654. Do estúdio Equalize, do Renato, no Tijolinho e, depois, na Felipe Camarão, onde gravamos muito, para registro e festivais.
A volta da gravação de “Velho baú da estrada”, no centro da cidade, quando seu Opalão preto, com câmbio automático de coluna de direção (tipo alavanca de seta), arrebentou o cabo do acelerador, no meio da Av. Pres. Vargas, e usamos meus “conhecimentos” de Praia Seca, para voltar acelerando com o afogador.
Quero lembrar dos festivais que não pude ir, pois já tocava profissionalmente, em especial o de Viçosa, no qual nossa música classificada “Maria Fumaça” foi como sendo de autoria dele e do Vicente, tirando segundo lugar e tocando na rádio. Como ele me disse – Você não foi, mas estava lá!
E a história atrelada a nossa música “O que você quiser”, que escrevi com “Z” e ele contou sobre a vergonha que passou, como professor no Instituto de Educação, quando usou a palavra errada no título de uma palestra. E que cada colega que entrava no auditório chamava sua atenção… não preciso dizer que nunca mais errei e que, até hoje, quando vou escrevê-la, dou um sorriso.
Contávamos derrotas, gabar-se era para os outros…
Uma vez, me disse que era tão fominha de futebol, que havia caído na brincadeira de amigos que o chamaram da rua para jogar e ele saiu como estava, descalço, na areia escaldante de Cabo Frio.
Também operou milagres e esteve em dois lugares ao mesmo tempo. Durante uma festa na casa da Mônica, tia e vizinha do Vicente, que morava no apartamento de cima, quando eu e Vicente estávamos, embaixo, compondo a canção “Ela”, da varanda ele dizia: “Não acabem! Já vou descer para fazer a segunda parte da letra”.
Quero lembrar das sublimes músicas com Vicente ou aquelas que ele aprendeu a fazer sozinho e que se tornaram trilhas sonoras de muitas violadas… e das nossas vidas… dos pequenos infinitos que são as parcerias.
Cada semana um trazia uma música nova, que servia de inspiração e fagulha para o outra. Esses momentos de criação e de mútua motivação, criam um círculo virtuoso. Uma dobra no espaço-tempo, um buraco de minhoca. Estaremos sempre lá. Pulsando.
Quero saudar o filho atencioso com os pais Sr. Murilo e D. Miriam, caçula do irmão, Murilo, do tio e padrinho orgulhoso do Rodrigo e da Marina. Quero lembrar do pai dedicado do Francisco. Que, aliás, recebeu esse nome pela admiração que o Marcelo nutria pelo Chico Buarque.
Quando soube que seria pai, me vendeu o homestúdio, os monitores, microfone e equipamentos com os quais trabalho até hoje. Sempre foi apaixonado pelo moleque, tanto que, saiu do Grajaú(!) para ficar mais perto do rebento (fato que só pode se justificar por um motivo desta envergadura).
Quero lembrar do marceneiro, que fazia móveis… arriscando-se, até, a fazer instrumentos de percussão, como Cajon e alguns outros. Poderíamos ficar horas, quando ele tinha tempo, falando de madeira, comida, vinho e música.
De acordo com o calendário cósmico de Carl Sagan, que compara o “Big bang” ao dia 1º de janeiro e o dia em que estamos a 31 de dezembro do mesmo ano, e nos informa que o homem só teria surgido nos últimos minutos do último dia. Podemos compreender que numa perspectiva histórica, o tempo que separa o nascimento e a morte de quase todos nós, não é nem considerado…
Respondendo ao que ele me falou sobre os festivais: ele já foi, mas ainda está aqui!
Assim, quero pensar sobre esse irmão que a vida me deu. Lembrando que existem estrelas que explodiram há milhares de anos e que sua luz continua a percorrer o universo, levando seu brilho a lugares inimagináveis.
Termino com seu trecho de letra: “Tenho um velho baú de recordações, sempre tem espaço, pode entrar! Meu passado pesa, mas eu sei voar”
A você meu parceiro, meu amigo, meu irmão: muita luz!
Até a próxima!