‘Entre Facas e Segredos’ todos são suspeitos

Falta o clima de nonsense para essa extravagância funcionar melhor como bom pastiche cômico de Agatha Christie

Muita gente adora ser enganada por uma boa trama policial: quanto mais conseguem nos enganar com pistas falsas (inteligentes), mais apreciamos o livro (ou filme) “de detetive”, um dos gêneros populares de maior repercussão.

Freud, no final da vida, encomendava livros de Agatha Christie e Dorothy L. Sayers; afinal ele também se considerava uma espécie de detetive quando propunha uma boa hipótese para explicar a procrastinação de Hamlet em cumprir a missão dada pelo fantasma do pai assassinado; ou quando examinava a postura da estátua de Moisés por Michelangelo com as tábuas da lei meio soltas na mão do profeta.

Atualmente  e já há algum tempo — os romances policiais são muito mais sangrentos e violentos dos que os de Agatha Christie, cujo padrão “vários suspeitos/mansão de gente rica/detetive estrangeiro” soa esgotado quando levado muito a sério. Mas o esquema pode servir para ótimos pastiches, seja em filmes especialmente bem-sucedidos como “Assassinato em Gosford Park”, de Robert Altman (2001), seja em brincadeiras de divertido nonsense como “Os Sete Suspeitos” (“Clue”), de 1985, ou mesmo “Assassinato por Morte” (1976).

Rian Johnson escreveu o roteiro e dirigiu “Entre facas e segredos” reunindo atores com algum nome hoje em dia e apoio do mesmo cinegrafista, o mesmo editor e o mesmo autor de trilha musical do que talvez seja seu filme de melhor resultado até hoje, “Looper — Assassinos do futuro” (2012). Mas lhe faltou uma aparência de descompromisso com a trama absurda que fazia de “Sete Suspeitos” um divertimento tão bobinho quanto divertido como distração — já que não teria cabimento cobrar o talento de um Altman ou do roteirista Julian Fellows em “Gosford Park”.
Também a questão dos elencos nessas extravagâncias deixa “Knives Out” (título original) em franca desvantagem: em “Gosford Park” havia, pelo menos, uma dezena daqueles atores e atrizes ingleses inacreditáveis pela quantidade e talento — que também recheavam “Assassinato por Morte”, indo de Alec Guiness a Peter Sellers!

E os atores cômicos de “Os Sete suspeitos” entravam na brincadeira sem filtros; já uma certa pompa atrapalha algumas participações no filme de 2019.

No filme em pauta talvez apenas Toni Colette pareça procurar acertar com um tom de exagero caricatural — mas acaba que fica deslocada em relação a uma certa seriedade com que outros atores se colocam numa trama tão rocambolesca que nem a maior suspensão de descrença consegue tolerar. Pois lhe falta o clima de nonsense absurdo, um grão de loucura que conseguisse deixar mais explícita a vertente cômica que ocuparia melhor o lugar de um “grande mistério” a ser desvendado de modo “muito surpreendente”.

Por fim, Daniel Craig até que se esforça, mas seu desempenho não decola como detetive de nome francês, assim como este pastiche cômico de Agatha Christie se perde nos desvios excessivos do enredo sem que o aspecto de boa chanchada predomine como seria necessário. Parece ter sido pretendido… mas ficou na intenção….

Foto Divulgação

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