Burrice-Ostentação

Sou nascido e criado em um bairro pobre da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Sempre brinco que já era da Classe C antes de ser modinha. Por isso, convivi e ainda convivo com o que chamam de povão. Aquele pessoal que pega ônibus, trem, BRT e decide eleição. Muitas dessas pessoas, que em pleitos eleitorais anteriores votaram no campo democrático, ou progressista, e sempre valorizaram o conhecimento e a educação – apesar de terem esses direitos historicamente negados – , entraram na onda da burrice-ostentação, que ajudou a colocar um sujeito como Bolsonaro na Presidência da República.

Tenho lugar de fala para dizer que o chamado povão valoriza a educação e o conhecimento. Segunda pessoa da família a pisar em uma faculdade (a primeira foi uma prima minha, um ano antes, também bolsista do Prouni), eu vi de perto a valorização que familiares, vizinhos, amigos e outros conhecidos direcionaram e ainda direcionam a mim. Até bebo de graça, dizem que gostam de trocar ideias comigo. Desconheço maior importância que isso. De verdade.

Quando lancei meu último livro, o Ponto Final, formado por crônicas e outras observações sobre o transporte público, várias dessas muitas pessoas compraram um exemplar. Fizeram festa por conhecer alguém que escreveu um livro e é sempre assim quando são inseridos em contextos de mais reflexão, conhecimento. Fazem festa. A festa é a revolução possível. Contudo, isso, sabemos, não costuma pegar ônibus, trem e BRT, então, passa longe, longe.

Perdi as contas de quantas vezes vi pessoas do chamado povão claramente felizes e realizadas ao receber uma boa dose de conhecimento formal. Em mesas de bar, ou das escolas públicas onde estudei a vida inteira. Aprender é um tesão e todo mundo tem tesão. Até mesmo os mais frigidamente ignorantes. Depois do aprendizado a sequência é tirar aquela onda, aquela ostentada, mostrando, orgulhoso, orgulhosa, para alguém, aquilo que acabou de conhecer.

Quem nunca viu um coroa de boteco que adora dividir conhecimentos (dos bons) com os outros? Essa é a ostensão-intelectual que o brasileiro gosta de ouvir e falar. O resto é cortina de fumaça burra feito uma porta prestes a cair sozinha, vazia de tudo. A burrice-ostentação veio trazer as trevas onde havia luz. Luz de lampião que fosse, mas havia. A burrice-ostentação é um santo ao contrário. Vade-retro.

Não há vaco que não possa ser ocupado. Nessa lacuna, na escassez de acesso a determinados conhecimentos e saberes ditos formais (porque essas pessoas são cheias de conhecimentos e saberes ditos não formais, apesar de terem tantas possibilidades negadas), a burrice-ostentação se esparrama. Catapultada por gente com boa visibilidade e redes sociais, para quem tem pouco acesso à informação reflexiva e séria, as narrativas mentirosas e fantasiosas são bem recebidas. Invadem os poros, entram pelas janelas sem pedir licença. E ficam.

Não é que o chamado povão seja ignorante. Essas pessoas são ignoradas. Aí, caem no golpe. O golpe está aí, mas não cai só quem quer. Muita gente cai sem querer, sem saber muito bem o que rolou, pois são excluídos do que está rolando. Os resultados mais drásticos são políticos e outros líderes (alguns religiosos) usando a situação para se beneficiar de incontáveis formas promovendo a burrice-ostentação, essa mesma que nega a ciência e despreza a vida.

Não duvidem, embora esteja embaixo dos holofotes, a burrice-ostentação e seus representantes fieis não são maioria. A maior parte do nosso povo valoriza o conhecimento. Eu conheço bem tudo isso. Juntos, nós podemos mandar de volta ao breu os responsáveis pela burrice-ostentação e sua evidência. Essa gente (esses sim, infinitamente ignorantes) tem que voltar a ter vergonha de falar asneira. Imbecilidade tem limite. Se a gente quiser expulsar, ela vai e não volta. Não entra nem nos ônibus, trens e BRTs, fica fora de vez das nossas vidas e já vai tarde; passa longe, longe. Vai de reto. Vade-retro.