Menina de Oyá

No belo documentário “Fevereiros”, de Márcio Debellian, Maria Bethânia é revelada com toda sua carga de sincretismo religioso e musical. Devota de Nossa Senhora e candomblecista, a cantora dividiu o segundo mês do ano de 2016 entre os festejos religiosos de sua Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, com os preparativos da Mangueira que a teria como enredo e se sagraria campeã do carnaval. Ao lançar “Mangueira – a menina dos meus olhos”,   a primeira voz da MPB devolve a gentileza e grava um álbum que situa a escola em seu estado de grandeza pura, afinal a Mangueira é a Mangueira. Mesmo lançado em dezembro, o álbum habilita-se ao posto de um dos melhores do ano de 2019.

Gravado em Salvador e no Rio, com lançamento do selo Quitanda e distribuição da Biscoito Fino, o álbum tem direção artística e repertório selecionado pela menina dos olhos de Oyá. “Quando fiz o disco, para agradecer à Mangueira, a homenagem que me prestou e a vitória  que conquistamos juntos, pensei em trazer aquele som de Santo Amaro. Queria fazer uma coisa que fosse o samba do Rio de Janeiro, o samba da Mangueira – com sua tradição, seu estilo, sua sofisticação –, mas que trouxesse toda a memória musical de Santo Amaro, infantil, comovida da minha infância. Então, eu convidei o Letieres, que é baiano, mas que é um músico do mundo”, explica Bethânia, referindo-se ao maestro, compositor e arranjador Letieres Leite, idealizador da Orkestra Rumpilezz, formada em Salvador por músicos de sopros e percussão, que assina os arranjos e a direção musical do álbum.

O repertório, como foi dito pela própria Bethânia, une o batuque africano do Recôncavo – que, aliás, subiu a Mangueira bem antes do samba propriamente dito. – O samba começou a soar na Mangueira quando os primeiros terreiros se instalaram por lá. Cartola, por exemplo, era cambono − ajudante dos médiuns − e frequentador da macumba. O surgimento das escolas de samba é ligado a este movimento e as primeiras baterias tinham ogãs entre os seus componentes. Cada escola acabou influenciada pela rítmica de louvação a um orixá. A bateria da Mangueira guardou como fundamento o toque característico do ilu de Oyá-Iansã – afirma Debellian. As ligações não param aí: no início dos anos 1930, o santamarense Assis Valente já avisava: “como a Mangueira não há!” Em 2016, ao homenagear Maria Bethânia com um enredo, a escola resgatou seu DNA mais profundo. Com orixás, santos e pajés, cruzou a avenida num desfile que entrou para a história dos carnavais.

Clássicos de Nelson Cavaquinho, Hermínio Bello de Carvalho, Guilherme de Brito, Paulinho Tapajós, Assis Valente e até do portelense Paulinho da Viola ganham interpretações definitivas na voz singular de Bethânia. Aliás, a gravação de “A flor e o espinho” (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito) é a primeira de Bethânia de uma canção da dupla. O mesmo ocorre em “Luz negra” (Nelson Cavaquinho / Irani Bastos) meio samba meio abolerada que você ouve aqui: https://www.youtube.com/watch?v=QmyrxF-QP7Q  

Magistral, não? “Vinicius de Moraes dizia que Bethânia canta sempre um pouquinho atrasada, e atribuía isso àquele passo atrás do samba de roda do Recôncavo, a um jeito de corpo. É dele também a máxima de que o bom samba é uma forma de oração”, destaca Debellian.

Além de celebrar a Estação Primeira e sua imponente ala de compositores de todos os tempos, o álbum apresenta dois sambas inéditos que concorreram em 2016, ano em que Bethânia foi enredo da escola, mas que permaneciam inéditos, sem gravação, por não terem sido escolhidos. “Trinta e sete sambas concorreram, algo que não acontecia há muito tempo na Mangueira. Queria pelo menos dois, que não se classificaram no disco: um é do Tantinho, baluarte da Mangueira, e o outro de Seu Nelson Sargento”, enumera Bethânia.

O irmão Caetano, “um compositor apaixonado e um mangueirense apaixonado”, bate ponto no álbum. Em parceria com o filho Moreno, gravou “Maria Bethânia, a menina dos olhos de Oyá (Nelson Sargento/Gustavo Louzada/Agenor de Oliveira/André Karta Marcada). Já Tantinho gravou o seu “A menina dos olhos de Oyá” (Tantinho/André Braga / Guilherme Sá/Alipio Carmo/ Jansen Carvalho/Marcos Tulio). Já o samba-enredo escolhido e que embalou o festejado campeonato mangueirense de 2016 não teria como ficar de fora deste trabalho repleto de sentimentalismo. E “Histórias para ninar gente grande”, o samba que deu novo título à agremiação este ano também foi incluído. Neste disco, as duas coisas se juntam e Bethânia transforma o samba-enredo campeão de 2019 numa prece pelo Brasil.

Foto Jorge Bispo/Divulgação