Morei a vida inteira em casas. Primeiro com meus pais, depois no segundo andar da casa deles e agora estou em um apartamento, sozinho. Da janela do novo lar consigo ver bastante coisa: a lagoa de Jacarepaguá, o movimento da Avenida Salvador Allende, muitas janelas vizinhas. Em breve, escrevo uma crônica sobre essa vista. Crônica se escreve com os olhos.
No apartamento ao lado, porta com porta com o meu, desde o primeiro dia que cheguei reparei um par de chinelos precisamente posicionados no canto do tapete de boas vindas.
Já cheguei cedo, tarde, sóbrio, bêbado e o par de chinelos está lá, no mesmo lugar. Isso me intrigou. Seria meu vizinho ou vizinha uma pessoa extremamente metódica que deixa tudo sempre alinhado? Seria uma pessoa que não sai de casa? Seria um chinelo que ninguém usa e tropeçou no esquecimento?
A vida anda bem pegada de trabalho e no pouco tempo de apartamento novo já viajei duas vezes. Nos dois regressos para casa lá estavam os dois chinelos, imóveis como pedras na praia e ideias reacionárias. No mesmo lugar. No mesmo canto esquerdo do sujo tapete de entrada.
A posição desses chinelos, sempre exatamente no mesmo lugar, virou uma obsessão para mim. Fiquei com vontade de fazer uma reportagem, ficar pendurado no olho mágico, tentar ouvir os passos descalços do vizinho ou vizinha ao lado através de um espião copo americano colado na minha parede.
O chinelo era preto, tamanho 38. De dedo. Nem novo nem velho. Ainda com bastante sola para gastar. No entanto, para mim ele sempre parecia parado. Paranoico? Eu? Quem não ficaria diante de tal mistério?
Na última semana, saindo de manhã para minha pedalada/corrida antes do dia de trabalho começar, vi que o par de chinelos estava lá, no mesmo lugar, mas um dos dois estava virado. Entrei em um dilema: desviro ou não? Estaria interferindo no meu objeto de pesquisa ou estaria eu ajudando uma pessoa metódica a não pirar por ver sua organização pisoteada? Quem desvirou o chinelo? O dono? Um vizinho? O vento?
Aproveitando, vocês sabem de onde vem essa história em relação aos chinelos virados? De acordo com uma matéria assinada por Larissa Silva no portal Terra: “A superstição surgiu como uma maneira de evitar sujeira. Tudo começou nos anos 60, quando havia muitas casas que não tinham pisos no chão. O chinelo era muito usado para impedir que os pés ficassem sujos por causa do chão sem proteção. Contudo, deixar o chinelo virado para baixo sujava o calçado que, consequentemente, acarretava a mesma situação para os pés. Para evitar esse problema, criaram a história de que deixar o chinelo virado pode causar a morte da mãe para ensinar as crianças a maneira certa de guardar os calçados”.
Voltando à minha realidade, eu não mexi no chinelo. Apertei o passo com meus tênis e fui me exercitar. Voltei para casa e os chinelos estavam do mesmo jeito: um virado para cima e outro para baixo. Tomei um banho, me arrumei, fui para uma pauta na rua e só retornei à noite.
Quando cheguei em casa não havia mais tapete nem chinelo. Dentro do apartamento vizinho um barulho enorme de faxina, esfrega-esfrega de vassouras e panos no chão. Fiquei triste. Frustrado. Nunca vou saber o motivo dos chinelos estáticos. Saber que nunca vou saber de tudo sempre me deixou meio para baixo. Pelo menos, considerando o barulho da limpeza, ninguém vai sujar os pés no AP vizinho.