Bordados é um espetáculo belíssimo em curta temperada no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de janeiro, para a sorte dos cariocas, principalmente das cariocas. Em um país com taxas altíssimas de violência contra mulher, o espetáculo cai como uma luva nesse momento, embora o tema aborde a cultura do Oriente, o delicado e potente texto da diretora e dramaturga Ana Teixeira tem atravessamentos e similaridades com a cultura vivida pelas mulheres ocidentais. E isso permite que a peça sirva para todas!
O texto é narrado por seis atrizes maravilhosas, que estão em pé de igualdade quando olhamos para suas performances cênicas, todas cheias de graça, esbanjam talento em seus ofícios. Cada atriz conta uma história, que de alguma forma e em algum momento, alcança algumas espectadoras na plateia.
É fácil olhar para o lado e perceber o secar de lágrimas, que rolam pelos rostos ainda cobertos por máscaras devido à pandemia.
Em uma hora e quinze minutos a cultura do Oriente é resgatada e apresentada com beleza, Ana Teixeira mergulhou fundo em seus estudos para entender e trazer um pouco mais dessas mulheres habituadas a costumes e tradições de uma cultura totalmente diferente da vivida pela maioria das mulheres ocidentais. Um mergulho muito bem executado presenteia a sociedade num todo. Um grande Salve a Ana, que também esteve envolvida na construção do cenário, do figurino e na direção musical. Houve entrega, entendimento e uma construção cênica sem arranhões.
O cenário é riquíssimo, com tapetes persas, cadeiras talhadas, belíssimos e requintados serviços de chá, lustres de chão no estilo marroquino, tudo lindíssimo transporta o público ao outro continente. Perfeito!
Os figurinos são de embasbacar, impossível encontrar uma falha, um tropeço sequer dos criadores. Vestidas com o “Hijab”, vestimenta usada pela maioria das muçulmanas, que vivem em países do mundo muçulmano. A depender da escola de pensamento islâmico, pode se traduzir na obrigatoriedade o uso da burca, como é o caso do Talibã afegão, ou até apenas uma admoestação para o uso do véu, como ocorre na Turquia. Com roupas semelhantes às túnicas masculinas e um lenço envolto na cabeça, só com o rosto à mostra. Mas, ao contrário do que a maioria ocidental pensa, não é algo que as desagrada, muito ao contrário, os lenços dão às mulheres orientais a liberdade de mostrar o que querem, ou não mostrar. Até porque se os homens as olham, a culpa é delas. Sempre delas, como no Brasil! A culpa recai sobre a postura e a vestimenta da mulher e raramente sobre o assediador.
Numa das atrizes, a toca que prende o cabelo por baixo da roupa lembra Yasser Arafat, destaca os beduínos (comerciantes e pastoreiros), bem típica dos palestinos, na versão preto e branco. Todos os tons utilizados são de um bom-tom inquestionável. Sensacional!
E que não esqueçamos dos chinelos turcos, destacados na cena, quando a personagem Hiba os retira e evidencia suas unhas dos pés pintadas de vermelho, uma liberdade conquistada por ser divorciada! Notável sensação de liberdade reafirmada por ela, naquele momento! Coisas de mulher, que somente uma outra mulher pode compreender!
O elenco pode ser comparado a um jardim das mais belas tulipas. Sandra Alencar, com sua maturidade, esbanja movimentos, impressiona com sua ferocidade cênica, que papel, que performance!
Carmem Frenzel vem a galope, a frente de qualquer um, que ouse criticar seu trabalho, pois faz uma composição de personagem belíssima. Talentosa e raptadora das atenções, quando questionada sobre a vida após a morte, lança a bomba: como acreditar nela, se meu filho morreu e não veio me ver? Questionamento legítimo, sublime e provocador!
A juventude de Nesrine, personagem da belíssima Vanessa Dias, invoca sonhos, militância a favor das mulheres, como se estivesse falando para todas: “Não vamos parar”, fantástica!
Vânia Santos e Flávia Lopes trazem histórias que valem muito ser recontadas, uma prega o bem e outra o mal, mas ao falar das atrizes, elas são igualmente cativantes e parecem que estão ali com a missão de tentar explicar a vida. Mesmo diante do amor e do ódio, pegam a plateia pelas mãos e conduzem a caminhos necessários, que todas precisam seguir.
Era para ser apenas um encontro de mulheres para um chá, no entanto o público assiste ao “Dabke”, dança popular na Palestina, no Líbano e na Síria, com músicas e instrumentos típicos da região, que compõem melodias em meio aos “gritos das mulheres árabes”, o Zalghuta.
Como mulher, espectadora e crítica teatral, posso legitimar a importância desse espetáculo para as mulheres. Senti na alma algumas passagens da peça e darei um testemunho incomum em minhas resenhas críticas: Ainda enlutada pela perda repentina de minha mãe, compreendi perfeitamente o que Walla contou sobre a sua mãe, que após a descoberta de uma grave doença presenciou seu pai cuidar de sua esposa com zelo e orgulho por poder estar a seu lado até os últimos dias. Tive a mesma vivência e pude atestar que ainda existe amor, na sua mais pura essência. O segundo atravessamento veio por meio de Massarat, que narra o episódio em que foi golpeada e esfaqueada pelo marido. Como ela, também fui vítima de violência doméstica. Em 2015, estava sobre uma cadeira de rodas quando o homem que amei por 17 anos, me agrediu fisicamente. Assim como Massarat, me reergui e me reconstruí. Tive que me sustentar aonde encontrava apoio, senti ausência e humilhação, mas o tempo ensinou-me a discernir o que quero para mim, para onde devo seguir e o caminho que não quero retornar.
Assistir a “Bordados” é essencial para mulheres, especialmente para as que vivem em situações vulneráveis. Ana Teixeira está de parabéns por tratar de um assunto tão delicado e dolorido, com a mesma beleza retratada em uma aquarela do mestre Albert Dürer, ao trabalhar uma técnica de difícil manuseio, que utiliza sutileza e cuidado na execução. Soube ser intensa e sensível, soube deixar florescer todo seu ímpeto de ser mulher!
Belíssimo! Bravo!
FICHA TÉCNICA
Texto e direção: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Elenco:
Fathmeh – Carmen Frenzel
Massarat – Flávia Lopes
Hiba – Jacyan Castilho
Khadija – Sandra Alencar
Nesrine – Vanessa Dias
Walla – Vania Santos
Iluminação: Renato Machado
Assistente de direção: Gustavo Damasceno
Cenário e figurino: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Músico: Rudá Brauns (off), Vanessa Dias e elenco (live)
Direção musical: Stephane Brodt
Edição de som: Gabriel Petit
Operador de Luz: João Gaspary
Operadora de Som: Julia Limp
Produção: Amok Teatro
BORDADOS
Centro Cultural Banco do Brasil (Teatro III)
Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro
Temporada até 24/4
Quarta a sábado, às 19h30 e domingos às 18h
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia)
Classificação etária: 12 anos
Duração: 80 minutos
É muito importante a população denunciar a violência contra a mulher, mesmo quando ocorre por pessoas próximas. O serviço está disponível por meio do número 180, funciona todos os dias e durante 24 horas. Além disso, o contato é feito de forma anônima e gratuitamente. A denúncia de agressão não precisa vir da mulher agredida.