Salve, salve Lee! Impossível não fazer uma reverência ao nome de um dos maiores seres humanos do Brasil, além da sua coragem. Uma transexual que não pode ser esquecida, em hipótese nenhuma!
Quando os portadores do HIV, na década de oitenta, não tinham o apoio nem mesmo de seus familiares, lá estava Brenda Lee — Cícero Caetano Leonardo — do interior de Pernambuco, dando as mãos a quem pedia socorro. Brenda foi assassinada brutalmente e sua missa de corpo presente foi realizada pelo padre Júlio Lancellotti, que na ocasião representou o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Uma justa homenagem, diante da imensa atuação e representatividade de Brenda. Vale lembrar que um de seus assassinos foi um soldado da Polícia Militar.
A companhia teatral Núcleo Experimental está de parabéns por trazer à memória de todos um ser humano como Brenda.
“O musical ‘Brenda Lee e o Palácio das Princesas’ traz um pouco da história de Brenda Lee, conhecida como “anjo da guarda das travestis”, ativista que fundou a primeira casa de apoio para pessoas com HIV/Aids, do Brasil. Ela tem uma pensão para travestis que, em sua maioria, vive da prostituição. Apesar da realidade de violência em que vivem, dentro da casa, as travestis são acolhidas por Brenda, que lhes ensina a querer mais da vida.” (Sinopse)
Tecnicamente, o audiovisual não deixa nada a desejar, com a direção do mestre Zé Henrique de Paula, não poderia mesmo dar errado. O olhar minucioso e ávido, como olhar de gato, enxergou bem, mesmo no escuro. O profissional assinou também o figurino, que acolheu a concepção da década de oitenta com primor. Figurinos e caracterizações estão em harmonia. Diego D’urso assina o visagismo com elegância, utiliza a medida certa de cores das palhetas, que na época era moda no circuito. Cores quentes!
Bruno Anselmo prefere o “menos é mais” na cenografia, a ideia do secador retrô caiu muitíssimo bem. Um objeto de cena, que remete ao passado, à década vivenciada por Brenda.
Vale mencionar o início do espetáculo, que lembra um cabaré, um espaço democrático e muito artístico, que fora comumente discriminado. Como canta Léo Jaime “Nada mudou”, aliás, quase nada, porque o cabaré de certa forma mudou, tornou-se um espaço mais midiático que nunca.
O elenco formado por Verónica Valenttino, Olivia Lopes, Marina Mathey, Tyller Antunes, Ambrosia, June Weimar e Fabio Redkowicz, é forte e animado, além de estar bem ensaiado. Todas são representantes, ou quase todas, da comunidade tão amada por Brenda. Artistas como qualquer outro, que estão na luta por espaço e merecem visibilidade!
As intercessões musicais quebram um pouco o dinamismo do espetáculo, especialmente para aqueles que não são fãs de musicais, para esse público específico a obra não será bem-vinda. Mas quando o texto volta, a curiosidade para entender um pouco mais sobre “o anjo da guarda das travestis” também volta e prende a atenção dos espectadores.
O trabalho merece um olhar novo para o que está chegando. Por muito tempo esses espaços foram negados para a diversidade e somente dando visibilidade para essa representatividade, a igualdade passará a tomar o seu lugar, porque há espaço para todos. E público também.
A atriz que encarna Brenda Lee, inicialmente, cria expectativa e dúvidas sobre sua atuação, mas com o andamento do espetáculo, sua simpatia chega aos olhos dos espectadores, quando na tela aparece a loira, impecável, lindíssima e com uma performance prazerosa, ela ganha a plateia.
Trata-se de um espetáculo visceral? — Não! Então, por que merece resenha? Merece resenha porque o espetáculo chama a atenção pelo tema abordado, com bom conteúdo, ótimo texto, excelentes encenações e isso basta. Mas, para muitos “foge ao tradicional”, atraem crítica destrutiva, ou simplesmente nenhuma crítica.
Laerte Késsimos é uma figura constante na direção de audiovisuais, pois é assertivo além da conta, prima por qualidade.
O mundo mudou e o Teatro, democraticamente, continua mantendo as portas abertas a todos, para que possam apresentar suas obras e a todos que desejarem assistir. Sempre político e belo por essência, o Teatro é acolhedor.
O espetáculo chega quando a sociedade começa a retornar ao teatro presencial, todos já cansados dos espetáculos on-line. A obra tem quase duas horas de duração, pelo horário que começa, tarde da noite, principalmente depois de um dia cansativo, fica bem difícil manter o êxito inicial, mas para aqueles que assistem até o final, é recompensador.
Um Pout Pourri é oferecido com músicas de Edit Piaf, Maria Betânia, Madonna e muitas outras, as canções são um verdadeiro manjar!
A atriz que faz essa apresentação se transforma em “Priscilla — a Rainha do Deserto”, linda e estonteante! Brenda é homenageada belissimamente, é de arrepiar a pele!
Um novo Teatro, que já não é tão novo assim, não mesmo. Basta lembrar dos Dzi Croquettes para entender, grupo teatral de 1972, que se destacou pelo seu visual exuberante, com maquiagem pesada, trajes e movimentos femininos. Corpos flutuantes, que entraram em conflito com o Sistema de Governo da época, com o próprio decreto do AI-5. Exilaram-se para o exterior, onde foram recebidos por Liza Minelli e fizeram imenso sucesso.
Eram atores que se travestiam, na linguagem de Cabaré. Claudinho Tovar fazia parte dessa trupe, que encantava e fazia comédias e paródias, com Elis Regina e políticos, um grupo sem freios, artistas criativos e espontâneos. Inclusive, Claudinho continua atuante, como escultor e também nas Artes Cênicas, no momento está em cartaz em um dos grandes teatros do Rio de Janeiro, como dramaturgo e cenógrafo, em “As meninas velhas”. Liberdade de expressão sempre!
Essa semana, a postagem de um político, em uma de suas redes sociais, chamou a atenção de milhares de pessoas. Ele postou um vídeo onde Renato Russo defendia as travestis e mencionava a importância de se criar uma lei, um estatuto, para protegê-las contra a discriminação, respeitando à identidade sexual e escolha de cada um.
O espetáculo merece aplausos, porque ressuscita as memórias e valoriza a biografia de Brenda Lee, um incentivo à militância. Para críticos que dizem faltar profissionalismo na obra, falta respeito a essa classe artística, que é ainda subjugada e preterida do seu pleno desenvolvimento profissional.
E para os que disserem que esta deveria ser uma crítica e não politicagem, vale lembrá-los que o Teatro é político!
Cores, brilhos e um vocabulário gay constroem a montagem, que merece muito respeito pelo tema que carrega e também pelas mãos potentes da Cia. Núcleo Experimental, onde sobram garra e competência.
Ah! E se você não gosta das travestis, o que é uma pena, jogue a culpa em Shakespeare, foi nas peças dele que as Monas começaram a brilhar!
BRENDA LEE E O PALÁCIO DAS PRINCESAS
On-line e gratuito
Temporada até 19/11
Todos os dias, às 21h
Classificação 12 anos
Duração 100 min
Assista no canal do Núcleo Experimental:
https://www.youtube.com/c/N%C3%BAcleoExperimentalSP
Dias 12, 13 e 14/11 (Sexta e sábado, às 21h e domingo, às 19h) o espetáculo também será transmitido pelas redes sociais do Teatro Alfredo Mesquita e nos dias 19, 20 e 21/11 (Sexta e sábado, às 21h e domingo, às 19h) o espetáculo também será transmitido pelas redes sociais do Teatro Paulo Eiró.
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia, letras e direção musical: Fernanda Maia
Direção e figurinos: Zé Henrique de Paula
Música original e preparação vocal: Rafa Miranda
Preparação de atores: Inês Aranha
Coreografia: Gabriel Malo
Assistente de direção (teatro): Rodrigo Caetano
Iluminação: Fran Barros
Cenografia: Bruno Anselmo
Visagismo (cabelos e maquiagem): Diego D’urso
Assistente de figurino: Paula Martins
Direção audiovisual: Laerte Késsimos
Assistente de direção (audiovisual): Lucas Romano
Câmera: Marco Lomiller
Som: Alexandre Gomes
Coordenação de produção: Zé Henrique de Paula e Claudia Miranda
Produção executiva: Laura Sciulli
Músicos: Rafa Miranda (piano), João Baracho (bases), Pedro Macedo (baixo), Abner Paul (bateria), Leandro Nonato (violão)
Elenco: Verónica Valenttino, Olivia Lopes, Marina Mathey, Tyller Antunes, Ambrosia, June Weimar e Fabio Redkowicz.