Em Nome da Mãe – Maria mulher

Ela chega diante de uma câmera, cheia de misticismo, mas são apenas nos minutos iniciais, até que a Maria, Maria eu, Maria você, Maria mulher como todas, se redesenha diante de uma câmera. Ela é Maria, mãe de Jesus, a Santa, a Virgem, a incorruptível, a impecável, simplesmente mulher.

Alguma mulher, mortal, não santa, já se imaginou no lugar de Maria? Maria não foi compreendida, não como mulher. Porque a sociedade nunca se importou com a pessoa comum que ela era, mas sim com a mãe de Cristo, a mediadora entre o homem e Deus, a imaculada. O espetáculo “Em Nome da Mãe” apresenta Maria, mãe, mulher, gestante. Uma Maria contemporânea, que poderia ser qualquer mulher, daquela época, ou desta. E expõe, sem véus, as agonias dessa mulher!

O espetáculo apresenta uma versão consistente para uma mesma história, contada e recontada em inúmeras línguas, através dos séculos. Sempre foi assim, mulheres em segundo plano, mesmo quando protagoniza um dos papéis mais importantes da história do mundo, o de geradora, é colocada em um papel coadjuvante, ou até mesmo de figurante. Desencadear, livrar, ensinar, recolocar, reconhecer-se como figura principal de sua própria história parece ser a missão das mulheres de hoje.

Tirar as correntes que aprisionam, romper com o passado machista, ainda mais quando o cenário é religioso e a servidão se torna ainda mais perigosa. Entretanto, Maria, a representante de todas as mulheres, enfrentou o patriarcado e a sociedade. Quebrou as regras e questionou a covardia a que foi submetida.

Grávida, sem marido, não podia Maria decidir sobre seu corpo, sua vida. Obrigada a submeter-se a um casamento, a uma história, que a mantivesse a salvo da sociedade e da crueldade das leis de sua época. A Bíblia, livro sagrado escrito por homens, mantém a submissão das mulheres aos homens.  Questionar a história e o papel da mulher é algo possível de se fazer nos dias de hoje, mesmo contrariando ainda alguns dogmas e desafiando toda a narrativa histórica. As mulheres de hoje, questionam, impõem-se e decidem pelo próprio corpo e vida.

Suzana Nascimento, atriz e dramaturga da obra, chega com seu olhar preciso, dinâmico, cheia de suas expertises. Aproveita de toda sua maturidade cênica e derruba qualquer chance de erro. Não há como dimensionar a generosa contribuição da artista. Suzana transcende o que se pode esperar de uma atriz. A câmera registra sua excelência performática, para a sorte dos espectadores. Ela constrói vozes durante o espetáculo, como as mais belas ondas. Narra Maria como nenhuma outra já fizera. A narrativa é um elixir de glória, quando se compadece da compadecida. E ela convida o espectador a mergulhar em uma história menos romantizada, menos lírica e bem mais dolorida, como deve ter sido. Se enxerga uma Maria de verdade, de carne e osso, repleta de angústias, medos e dores, uma Maria tal qual qualquer outra.

Como Maria precisou enfrentar os medos, naquela época rude e ainda teve que acatar as ordens dos homens, dos anjos, de Deus. Ordens e mais ordens.

Suzana merece os aplausos que chegam, antes mesmo do término do espetáculo. Ela usa do dialeto hebraico com exatidão, em um sotaque belíssimo. Que texto imenso e tão bem encaixado!

O espetáculo é acompanhado por uma trilha original magnífica. A música é como outro personagem, transporta a sentimentos ainda mais profundos. Grandioso, habilidoso, sensível e visceral Federico Puppi, impossível não apreciar o trabalho desenvolvido para esta obra. É simplesmente arrebatador! A trilha sonora leva o espectador a outra dimensão. Consagradas ou sagradas, todas as melodias e cadências. Federico auxilia a conexão, entre as mulheres e suas almas, fazendo ressaltar os instintos. Há algo meio gregoriano, intenso e profundo nas partituras. Um trabalho que ficará na memória daqueles que admiram sonoplastias impactantes. Digno de todos os prêmios nesse quesito.

Cenário cru, nada que chame muita atenção. Diante de um texto como esse, a época e os poucos registros, fica complicado trazer mais do que se conhece da história. Um figurino rico da época, a representatividade da lã, a beleza e a simplicidade das transparências, que enaltecem a pureza dos sentimentos e reforçam a penumbra existente sobre os fatos reais. Tudo assinado pela exímia profissional Desirée Bastos, já considerada a coqueluche do teatro. Ela está em quase tudo que há de bom. Uma profissional que dispensa comentários, basta apenas perceber, por meio de cabaças e areias, sua percepção rica, em detalhes muito bem compreendidos. Desirée é a graça necessária a um espetáculo, quando se pensa em cenário.

Sim, o Velho Testamento é lido, suas leis árduas são trazidas sem leviandade. Leis cruéis, leis dos homens. Medo ou fé? O que leva a Deus? É uma questão que não dispensa análise. Por que a fé está sempre agregada ao medo? E Maria, como se sentiu quando engravidou?

E trechos da Bíblia lidos com exatidão, proferidos pela boca da atriz, colocados também como reflexões, do que apenas ordens a enganar rebanhos dizimistas.

E também vem o Novo Testamento, que apresenta as mulheres submissas a seus homens, para angústia e irritação da plateia feminina. E assim tenta-se desmontar tanta agressividade com o gênero feminino. Sabemos apenas que, com ou sem a Bíblia, as mulheres atravessaram o tempo.

A Maria contemporânea brinca, fica mais à vontade. Chama o superior de Cid Moreira, quando esse empresta sua voz à leitura de livros “sagrados”. Tudo sensacional. Ela usa da sua leviandade, para contra-argumentar. O duelo de Maria com as ordens divinas chacoalha a alma!

Maria, representante de todas as mulheres, contesta, não aceita tudo como antes, questiona, argumenta. Como uma mulher que dá a vida ao Cristo Salvador, tem apenas seis falas no livro da vida? Difícil encarar tudo isso sem questionar!

Tudo às claras, uma dramaturgia elegante, bem pesquisada, bem embasada, rica, inúmeros desdobramentos linguísticos, um verdadeiro presente às mulheres.

A obra literária homônima do italiano Erri de Luca foi traduzida e serviu como ponto de partida, com ousadia e retórica, a uma dramaturgia que faz paralelos com os dias atuais e evoca a ancestralidade feminina, pela primeira vez montada no Brasil.

Durante a pandemia, a atriz levou mulheres a elevarem a alma por meio de áudios, num grupo criado por ela, chamado Roda Balsâmica. Uma atriz disposta a se manter viva e a manter vivo o seu ofício. Suzana já esteve nessa coluna por intermédio da cativante “Dona Zaninha”.

Voltando à peça “Em Nome da Mãe”, o trabalho é impactante, prende a atenção, emociona. A plateia vai facilmente se ver em lágrimas. Tudo absolutamente belo e artesanal, verdadeiramente Teatro.

A diretora Miwa Yanagizawa, também já mencionada nessa coluna durante a pandemia, é imensa em mais um trabalho. Grandiosa em suas direções, não fez diferente dessa vez. A obra é irretocável! São fotografias perfeitas, todos os aspectos teatrais estão em harmonia com o texto. Que equipe, que filmagem, que maravilha! Palmas também para a diretora de fotografia, Elisa Mendes.

A delicadeza da renda, o tecido que cobre o corpo da atriz, o olhar para a filmagem, tudo inquestionavelmente magnânimo. Os movimentos corporais da atriz são absurdamente convincentes e assertivos. Tudo eloquente, diante de um texto tão visceral. Tudo cerzido com a força que precisava ter.

E embora, seja ainda questionável para alguns assistir a espetáculos em telas, essa peça voa e prende a atenção, minuto por minuto, de qualquer um.

Parabéns ao SESC por sua curadoria impecável.

É possível se orgulhar de ser mulher, de rever conceitos e quebrar com esse antagonismo agressivo. Que caiam essas “culpas” de cada mulher julgada injustamente, que todas as mulheres se encham, se fartem de Atenas, de Oya, de Diana, dessas mulheres que não se limitam, esbanjam força.

Que os homens possam entender a maternidade um pouco mais, a dor de uma mãe que perde seu filho. “Cresce, mas pouco, lentamente”. Assim pede Maria a Jesus, apenas um bebê de colo, é possível sentir sua dor, impossível uma mulher não sangrar diante da força desses versos.

Como diz a anciã, personagem criada por Suzana na dramaturgia: “Serás venerada por meio mundo por isso, para sempre lembrada como mãe, nunca como mulher. Fizeram-te crer que és apenas um receptáculo, mas tu és aquela que enfrentou tudo isso e ao dar à luz, dividirás a história entre o antes e o depois, e, ainda assim, não terás lugar no pedestal da Santíssima Trindade. Quando entenderes a missão do teu filho, uma espada transpassará a tua alma. E quando chegares à tua velhice, tentarás contar sua história à tua versão jovem, mas esta carta, minha querida, jamais chegará às tuas mãos”.

Isso basta! Para entender a complexidade dessa obra-prima!

EM NOME DA MÃE

On-line e gratuito

Plataforma SESC EM CASA

youtube.com/portalsescrio

Até 29 /8, sempre às 19h

Duração: 60 min

Classificação: 14 anos

FICHA TÉCNICA

Peça baseada no livro “Em nome da Mãe”, de Erri de Luca

Concepção e dramaturgia: Suzana Nascimento

Tradução: Federico Puppi

Direção: Miwa Yanagizawa

Atuação: Suzana Nascimento

Direção de Fotografia: Elisa Mendes

Trilha sonora original: Federico Puppi

Direção de arte, figurino e cenografia: Desirée Bastos

Assistente de cenário e figurino: Isaac Neves

Câmera e edição: Elisa Mendes

Finalização áudio: Diogo Guedes

Captação de áudio: Gabriel Martau

Visagismo: Willian Xavier

Fotografias: Elisa Mendes

Foto still: Júlio Ricardo

Projeto gráfico: Raquel Alvarenga – Studio Janela Aberta

Social mídia: Ana Loureiro

Assessoria de imprensa: Paula Catunda e Catharina Rocha

Administração financeira: Natália Simonete – Estufa de ideias ADM financeira

Direção de produção: Sérgio Saboya e Silvio Batistela

Produção: Galharufa Produções Culturais

Idealização: Suzana Nascimento e Federico Puppi

Coordenação Geral: SP Nascimento Produções

PARTICIPAÇÕES ESPECIAIS

Cantoras:  Rita Beneditto, Kacau Gomes, Mari Blue, Fernanda Santanna e Alexia Evellyn |

Percussão: Marco Lobo