Vocês já andaram de carro com um motorista cego? Eu já. Várias vezes. E é um dos melhores que conheço. Melhor entre os motoristas. Entre os cegos, também. Isso porque, ele enxerga de um olho. Esse cara não sou eu – apesar dos textos caolhas aqui. Esse cara é meu pai. Meu pai é o cara. Minha maior referência na condução desse trem desgovernado que é a vida.
Recentemente, fomos de carro a um município vizinho, aqui ao lado da cidade do Rio de Janeiro, e na volta pegamos uma chuva das boas. Das boas, não. Das ruins. O trânsito parou em vários trechos do caminho, ruas alagadas, acidentes, carros boiando, pessoas perdendo bens materiais e até se machucando fisicamente. Vistas bem negativas.
Aliás, falando em visões pouco boas, meu pai estava ao volante nesse dia tenso. Eu havia chovido muita cerveja e vodca no meu fígado e não estava em condições de dirigir. As outras pessoas que estavam no veículo não sabiam uma gota de direção. O jeito era o homem que não enxerga de um olho (devido a um acidente de carro) nos guiar até em casa. “Já vi cego ser guiado. Essa é a primeira vez que vejo cego guiar” brincou o coroa enquanto tentava ver um palmo à frente do nariz.
Em um ponto do caminho, já perto do Rio de Janeiro, eis que surge uma grande poça d’água. Daquelas que assustam até veículos piratas. Os carros paravam, olhavam e voltavam. Ninguém queria encarar a poça que mais parecia um lago. “Disseram que tem um Fusca no fundo” afirmou um motorista que recuou diante do monte de H2O.
Meu pai já não estava enxergando nada. A água que desabava no vidro da frente do carro obstruía a visão. A única visão. A única, não. Eu também não via nada. Embaçou, tipo TV com sinal ruim, videogame pifado, essas coisas. E olha que eu já estava ficando sóbrio. Decidimos parar o carro no posto de gasolina próximo à poça, por onde os motoristas estavam fazendo o retorno para escapar do mar que virou o sertão de asfalto.
“Melhor não se arriscar. Já vi muitos carros morrerem quando essa poça se forma aqui” alarmou o frentista. Esperamos mais de uma hora e a chuva só aumentava. A poça ficou ainda mais assustadora. Contudo, meu pai não é de nadar e morrer na praia. Herdei isso dele. Miramos a água e decidimos passar. A chuva não passa; nós passaremos. “Não passarão”, deve ter pensado o fascista, digo, frentista, que, em minha opinião, só queria companhia no deserto posto de combustível.
Primeira marcha. Assim que se passa por uma dificuldade: passo a passo. Pé a pé. Devagar. Força, carro. Força. Tensão no veículo. Se o buraco for mais embaixo? Se houver buraco? Se for mais água do que estamos (não) vendo. Eu estava com medo. Pior, eu não via o motivo do meu medo. Todo adversário invisível é mais forte. Ué? Já acabou, poça? “Tanta gente com medo disso? Fala sério”, disse meu pai, aumentando os faróis, os olhos do carro, para ver melhor. Águas passadas são mais calmas. É só não boiar. Navegar (ainda que de carro) é preciso. Senão, o medo te cansa. E a gente só cansa quando para.