Os Autos são curtos e de linguagem simples. Os personagens simbolizam as virtudes, os pecados, ou representam anjos, demônios e santos. Agora que se sabe o que é um Auto, vamos ao espetáculo: “Auto de João da Cruz” volta com força, na plataforma do Youtube.
Em um momento difícil, o teatro resiste na intenção de contribuir com a saúde mental dos espectadores.
Redundante falar bem do texto, afinal Suassuna e boa qualidade textual são sinônimos.
Pitadas de humor incrivelmente satisfatórias. A direção de Inez Viana é de uma precisão incrível, Inês é uma artista com extenso currículo, altamente gabaritada quando se fala de Artes Cênicas. Trabalhou com Suassuna, mais que isso, uma amizade nasceu durante os trabalhos que a atriz protagonizou de algumas obras do autor.
O cenário seco, como o Agreste de Ariano. A iluminação merece considerações, tudo muito bem colocado. Em uma das cenas o encontro da luz com o pó (que o cego sopra, o demônio) tem um efeito perfeito. A iluminação dá vida ao espetáculo.
A sonoplastia, feita manualmente, celebra o Nordeste, tudo feito acusticamente pelos próprios atores.
A criatividade da Cia. OmondÉ, usada com inteligência, chama a atenção. A companhia teatral comemorou dez anos com esta obra, há um ano atrás, nos palcos do SESI – Firjan, no Centro do Rio.
O figurino não chama a atenção, perfeita simbiose com o cenário, não há superprodução e acertaram, porque o “cru” é necessário à uma produção inspirada nas entranhas do Nordeste fatigado, qualquer cor a mais causaria um desiquilíbrio estético e visual, a composição nua e crua, por si só, é lindíssima!
A transformação do João chama mais a atenção, ao que é significante e necessário pois é exatamente aí, que a dramaturgia define sua forma. Nada detém tanto a atenção, quanto a potência cênica dos oitos atores em cena.
Vale mencionar o texto, a inspiração do mal que há em cada um, algo tão latente em Suassuna. A linguagem rebuscada, com hashtags e bordões atuais. “Eu posso tudo”, assim diz João, com seu olhar virado para o próprio umbigo, a arrogância habita o personagem, embora os artistas arranquem risadas do público, a dramaturgia capaz de levar a análises muito boas com olhar aos questionamentos humanos.
Ao chegar ao teatro, quando a peça esteve presencial, o público era recepcionado pelo próprio elenco. Um momento agradável de aproximação.
André Senna, o antagonista, tem um trabalho esplendoroso, consegue carregar ganância, mentira e vaidade, com simpatia. Acreditem!
Junior Dantas, o anjo da guarda, é perfeito! A sensação de plenitude ao sair do espetáculo, com a certeza de ter valido a pena ter estado ali, é responsabilidade desse ator.
Sabe quando não há palavras para o imensurável? E imensurável se faz Junior Dantas.
Zé Wendell, até pouco tempo atrás, interpretava “O hétero”. E pronto, virou João! E como nordestino que é, preenche o palco de luz. Irradia competência, em um mergulho profundo nas dores e questões humanas, que o texto convida vivenciar.
Pode-se ter a sensação de que Matheus Nachtergaele poderá adentrar a cena a qualquer momento, mas não acontece. Esse João é mais contemporâneo e tira até “self” no imaginário.
João e Wendell, nordestinos, vínculo que dá a Zé a força que seu personagem merece. O elenco bem conduzido por Inês Viana é muito profissional, belo e capacitado e atuam em perfeito equilíbrio.
Musicalidade e teatralidade se abraçaram e tudo dá certo.
Os demais personagens não carregam o sotaque nordestino como João.
A crítica a atual política é implícita, mas arranca gargalhadas e aplausos de todos.
Dizem que o Auto é uma recriação do Fausto, escrito pelo escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, em 1829. Será mesmo? Tudo bem que a danação do mal se deleitou sobre João, como fez com o chato do Fausto. Mas não restarão dúvidas de que o Auto é mais leve e divertido.
Se é uma questão de gosto? Depende, mas é questão é de bunda mesmo, em 2019 a ópera Fausto, obra-prima alemã, esteve no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, tem quase quatro horas e meia de duração. Belíssima sim, no entanto, a maioria sai do teatro com o bumbum quadrado.
Salve Ariano, salve Suassuna!
FICHA TÉCNICA
Texto: Ariano Suassuna
Direção: Inez Viana
Elenco: André Senna, Elisa Barbosa, Iano Salomão, Joel Tavares, Junior Dantas, Leonardo Bricio, Luis Antonio Fortes, Tati Lima e Zé Wendell
Direção de movimento: Denise Stutz
Iluminação: Ana Luzia de Simoni
Figurino: Flavio Souza
Consultoria musical: Fábio Campos
Assessoria dramatúrgica: Carlos Newton Jr.
Cenotécnico: André Salles
Assistente de Cenografia e Contrarregra: Matheus Ribeiro
Redes Sociais, Edição e Operação de Luz: Rodrigo Menezes
Programação Visual: André Senna
Câmeras: Bem Medeiros, Cauê Monteiro, Clara Trevia, Theus Santos e Victória Roque + GoPro.
Coordenação audiovisual e online: Bem Medeiros e Rodrigo Menezes
Assessoria de imprensa: Paula Catunda e Catharina Rocha
Produção: Eu + Ela Produções Artísticas e Pé de Vento Produções
Direção de produção: Douglas Resende e Jéssica Santiago
Produção Executiva: Bem Medeiros
Assistente de Produção: João Paulo Rodrigues
Catering: Walter Silveira
Transporte: Gerson dos Santos
Realização: Cia OmondÉ
Espetáculo gravado ao vivo, no Teatro Firjan Sesi Centro, nos dias 9, 10 e 11 de fevereiro de 2021.
AUTO DE JOÃO DA CRUZ
Temporada até 28/3
Sexta a domingo, às 19h
Gratuito e on-line
Assista: no YouTube, no canal da Cia OmondÉ bit.ly/omondeyoutube
Classificação: 14 anos