Há muito mais no filme do que a proeza técnica que coloca o espectador dentro do conflito.
“1917” é daqueles filmes que merecem uma revisão antes de um veredito crítico. Isso porque sua ousadia técnica acabou monopolizando as discussões e análises, como se o filme se resumisse à proeza dos realizadores (sobretudo a do diretor de fotografia Roger Deakins) de montar o filme em um plano-sequência único (com cortes disfarçados e quase imperceptíveis). Tal opção não é gratuita ou exibicionista, mas sim esteticamente justificável, pois está a serviço de um propósito: fazer o espectador perceber os horrores da Primeira Guerra Mundial se sentindo no meio das trincheiras e campos de batalha do conflito entre ingleses e alemães.
A história é muito simples: dois combatentes são encarregados de levar uma carta a um coronel para alertá-lo de que o pelotão de 1.600 homens conduzido por ele está prestes a cair numa armadilha alemã e será dizimado caso a tropa avance. Não há, portanto, a complexa discussão moral levantada por um dos melhores filmes de guerra de todos os tempos, “Gloria Feita de Sangue” (1957), de Stanley Kubrick, em que o coronel vivido por Kirk Douglas advogava em prol de três de seus soldados, escolhidos como bodes expiatórios e condenados à morte por se recusarem a encarar uma missão suicida. Aqui os soldados não vêm outra saída, até porque o irmão de um deles faz parte do pelotão em risco.
Mas o diretor Sam Mendes seguramente viu a obra-prima kubrickiana, e há muito dela em “1917”, desde os longos planos sem cortes nas trincheiras aos pequenos comentários visuais e verbais que reforçam a insanidade daquela guerra tão sangrenta. Quando o cabo Schofield (George MacKay) se despede do capitão Smith (Mark Strong), este o aconselha para que se certifique de que a entrega da carta ao coronel tenha testemunhas, pois sabe que a vida dos recrutas tinha pouco valor para os oficiais graduados, como Kubrick nos ensinou de maneira tão contundente. Até mesmo o momento mais sublime e poético de “Glória Feita de Sangue”, os soldados franceses se emocionando ao ouvirem a cantora alemã na cantina, é evocado em “1917”, quando a tropa escuta concentrada uma música suave ao amanhecer.
Se a primeira sessão nos faz mergulhar nesse universo, a revisão do filme permite observar com mais atenção os pormenores: como os diálogos evitam as armadilhas da redundância, do didatismo e dos exageros sentimentalistas; como a música de Thomas Newman pontua tudo com delicadeza e precisão; e sobretudo como a câmera de Deakins é capaz de fazer toda essa engrenagem parecer tão verossímil. Acompanhar e estudar os movimentos é uma aula de cinema. Estupefatos, nos perguntamos como ela segue um personagem despencando em um rio, ou simplesmente capta sem solavancos o movimento de um soldado subindo na caçamba de um caminhão e se espremendo entre os companheiros.
É possível encontrar na internet documentários dos bastidores explicando como tudo foi feito. Não gosto de assistir a esse tipo de making of, porque acredito que quebraria o encanto de me ter feito, acreditar, por duas horas, que ali não era uma locação cheia de cenários falsos e marcações, mas sim a Europa em guerra de 1917. E é isso que coloca a obra de Sam Mendes desde já entre os melhores filmes sobre o tema.