Outro dia ouvi de um homem jovem que o feminismo branco não é feminismo. Isso porque as mulheres brancas feministas, hoje, não teriam, em tese, que lutar contra discriminação, machismo e violência como asiáticas, indígenas do mundo inteiro, negras e as das diversas etnias que qualificamos como árabes. Tudo que eu sei sobre o amor (Intrínseca, R$ 59,90), da inglesa Dolly Alderton, ganhadora do National Book Award de 2018 na categoria Biografia, parece confirmar a observação do rapaz.
O segmento biográfico vem abrindo espaço para mais do que recordações sobre infância e juventude – até porque muitos dos biografados são cada vez mais precoces na autoexposição que os leva a repartir segredos de suas vidas publicamente. A biografia de Dolly Alderton traça sua trajetória da adolescência à crise dos 30 anos – hoje ela tem 33. Uma vida de jovem de classe média, que cursou universidade, consumiu ou consome um bom sortimento de drogas lícitas ou não, seus relacionamentos amorosos, as crises existenciais por não ter se casado ou tido filhos.
Apresentada como uma Bridget Jones da vida real, Dolly difere um bocado da simpática personagem. As desventuras de Bridget, hilariantes em ficção, não têm qualquer graça quando transpostas para uma mulher que vive as angústias por não se reconhecer enquanto solteira, embora não haja qualquer risco de ficar sem teto ou dinheiro. Dolly apresenta uma característica dos que se entendem como “jovem adultos”: precisa do apoio do grupo de amigos, que substituiu a referência das famílias para as tribos urbanas desde fins do século XX. Acompanhar o noivado da melhor amiga é uma perda pessoal para a autora sem namorado. E como qualquer hipster, millenial ou qual seja a denominação geracional escolhida, o temor ao casamento é maior do que qualquer outro rito de passagem da vida, desde que envolva não apenas dividir uma casa ou despesas, mas a assinatura de um contrato de sociedade civil. Some-se a tantos dramas – repito, sem qualquer pavor por falta de alimento, abrigo ou emprego – sobreviver na sociedade patriarcal.
Os problemas de autoafirmação num universo machista assombraram outra jornalista inglesa, Caitlin Moran, que em 2011 lançou Como ser mulher (Paralela, R$), um libelo feminista bem mais divertido do que o olhar desanimado de Dolly Alderton. Caitlin nasceu em 1975, pegou ainda uma boa segunda onda feminista, se encantou por Germaine Greer e começou a trabalhar numa publicação especializada em música pop em plena adolescência. Mais velha de oito irmãos, destila segurança, embora saiba que não corresponde aos padrões estéticos da época, ainda que tente vestir street wear como uma top model. O sarcasmo e a autocrítica se estendem a todas as mulheres, atormentadas por não conseguirem adotar padrões inalcançáveis de moda, peso, beleza e comportamento, ao mesmo tempo em que caem na armadilha consumista de comprar sapatos com saltos altíssimos que serão abandonados depois de uma só saída. Ou no meio da saída. Se nem Dolly Alterton nem Caitlin Moram tiveram que lutar para sobreviver num mundo mais condescendente com homens, certamente isso se deve não apenas ao incontestável talento de ambas, mas a serem bonitas, brancas de olhos azuis, ainda que não ricas, nem aristocratas.
Interessante é descobrir que esses dilemas da modernidade nem de longe incomodaram um grupo de artistas espanholas de classe média alta ou ricas, nascidas entre 1989 e 1914, hoje conhecidas como as Sinsombrero. Quando andar em público sem chapéu poderia gerar insultos e – até – apedrejamento, foi o que fizeram Maruja Mallo e Margarida Manso, que passeavam por Madri ao lado de Frederico Garcia Lorca e Salvador Dali. O chapéu, simbolicamente, tolhia as ideias, explicou Maruja Mallo em uma entrevista, muitos anos depois.
Participantes do movimento artístico Geração de 27, um grupo de vanguardista desfeito com a vitória de Franco depois da Guerra Civil, quando vários se exilaram, as Sinsombrero pouco foram reconhecidas fora de seu país. Poetas, atrizes, pintoras, escritoras, elas contestavam o determinismo biológico, sem se contentar com a maternidade como forma de realização pessoal. Até hoje, muitas permanecem à margem dos compêndios de arte. O resgate de suas histórias está em As sinsombrero – sem elas a história não está completa (Relicário, R$ 62,90), de Tània Balló, uma das diretoras de um documentário que levanta a importância de algumas dessas mulheres no movimento artístico e de resistência ao fascismo. Ao registrar a pesquisa que levantou para o filme, Tània Balló traz biografias sofridas, calcadas na luta pela igualdade entre os sexos. Mais do que vanguardistas e, diferentemente das autoras inglesas contemporâneas, essas mulheres não tinham a menor dúvida quanto ao que a sociedade esperava delas. E estavam determinadas a desprezar por atos e artes qualquer uma dessas expectativas. Antes do termo ser consagrado, elas eram feministas e pioneiras na derrubada de tabus que ainda estão longe de ser exterminados.