Pautas identitárias surgidas a partir do século XX continuam incomodando alguns setores da sociedade ocidental eurocêntrica branca, enquanto permanecem ignoradas legal e cotidianamente por diferentes nações. Embora a reprodução da espécie ainda dependa da união de elementos produzidos por homens e mulheres, estas continuam como cidadãs de segunda categoria até onde tiveram direitos reconhecidos, incluindo aí a representação artística. Os diferentes aspectos de anulação feminina são analisados pela britânica Caroline Criado Perez em Mulheres invisíveis – O viés de um mundo projetado para homens (Intrínseca, R$ 89,90).
Se Simone de Beauvoir balançou a intelectualidade ao dissecar a historicamente a estrutura patriarcal com O Segundo Sexo, em 1949, apesar das diferentes ondas do feminismo, mulheres são mantidas em estado de servidão não reconhecida em boa parte do mundo, planejado pela ótica masculina. Fora os aspectos de valorização cultural até as estatísticas privilegiam os homens, diz Perez. No Reino Unido, a mineração do carvão tornou-se parâmetro dos empregos da classe operária, ocupando 53.420 pessoas, e, 2016, a imensa maioria, homens brancos. No entanto, a força de trabalho eminentemente feminina se dedica a serviços domésticos e faxina, empregando 924.640 pessoas, lembra a autora, que enumera exemplos da disparidade no mundo inteiro. Um exemplo: o uso de transportes coletivos é maior, nos países europeus, por mulheres, cujos trajetos não se limitam a ir de casa ao trabalho e vice-versa. Mulheres, em sua maioria, levam filhos ao colégio, trabalham, acompanham idosos nas consultas médicas e, quando voltam do trabalho, fazem compras para abastecer a casa, onde se dedicam quatro vezes mais do que os homens a cumprir tarefas domésticas.
A discrepância salarial entre homens e mulheres e o excesso de afazeres a que elas se dedicam vagarosamente preocupam administradores públicos. Mulheres empresárias recebem, em média, metade dos investimentos que homens obtêm para financiar seus negócios. Paradoxalmente, startups abertas por mulheres são mais lucrativas do que as tocadas por homens. Caroline Perez investiga dosagens de medicamentos, calculadas para organismos masculinos, aparelhos de ginástica – que também levam em conta os corpos de homens no cálculo de aproveitamento e queima calórica –, além de bombas para a retirada de leite materno que incomodam as usuárias, por não serem vistas pela ótica das mulheres (as bombas são artigos de grande consumo nos Estados Unidos, onde não existe licença-maternidade). Mantidas tais métricas, o desequilíbrio socioeconômico só há de perdurar, mesmo que homens há tempos não sejam mais os únicos provedores das famílias.
Para entender a cultura patriarcal em arranjos sociais completamente diferente do que leitores brasileiros conhecem, o libanês Rachid Al-Daif traz em E quem é Meryl Streep? (Tabla, R$ 63,55) um narrador absolutamente egocêntrico, machista e atônito frente ao comportamento de sua mulher. Recém-casada, ela prefere passar dias e noites na casa de seus pais, reduzindo ao máximo o contato com o marido, que compra um aparelho de televisão com acesso a canais por assinatura a fim de manter a mulher no apartamento onde deveriam morar. É na televisão dos sogros que ele toma conhecimento da Nova Ordem Mundial, anunciada por George Bush, em 1991, como sucessora da Guerra Fria.
A relação de Rachid (o autor sempre dá seu nome a personagens típicos do que ele próprio critica, um Líbano em crise com as tradições, em tempos de paz e sofrendo as influências de pensamentos liberalizantes no meio conservador) com novas ideias se dá pelo noticiário ou ao assistir a filmes como Kramer vs. Kramer. A personagem interpretada no filme por Meryl Streep abandona marido e filho, o que Rachid condena, sem, no entanto, perceber o quanto o homem descobre sobre a paternidade a partir do movimento da mulher. O próprio Rachid só se interessa em descobrir o passado sexual de sua própria esposa, enquanto trata como objeto qualquer outra mulher jovem que surja em seu caminho. E considera vulgar qualquer novidade, como sua mulher compreender expressões da língua inglesa, enquanto ele conhece bem o francês, que a esposa não compreende. Fascinante e intrigante. Al-Daif apresenta um universo não tão distante do Brasil que vai às urnas no fim deste mês, quando o país pode tentar reduzir – ou não – desigualdades e contradições.
Enquanto isso, vamos ler!