A última autora atacada pela sanha revisionista literária é Agatha Christie. A editora Harper Collins anunciou a retirada de termos ofensivos a etnias, religiões e outros temas controversos usados pela velha dama do crime em sua vasta obra. O selo Puffin, da Penguin, também está reeditando os livros de Roald Dahl. As bruxas de uma de suas histórias não serão mais carecas, porque há mulheres que usam perucas sem buscarem atrapalhar com feitiços a vida alheia. Os Oompa Loompas, da Fantástica Fábrica de Chocolate, serão apresentados como “pessoas pequenas” e não “homenzinhos”, evitando, assim, o preconceito de gênero.
Ressalvando que Dahl jamais foram “um anjo”, Salman Rudshie considerou “absurda censura” e uma vergonha a alteração das melancólicas histórias infanto-juvenis do inglês. Rudshie, afinal, é perseguido por um sentença de morte devido ao que se considerou heresia em seus Versos Satânicos. A revogação da sentença pelos tribunais conservadores dos aiatolás não impediu um fanático religioso de esfaqueá-lo num debate público.
Enquanto se esfaqueiam criações ficcionais, principalmente as que podem influir nas mentes jovens, como as de Monteiro Lobato, cujo vocabulário é antiquado demais para as novas gerações, mas o enredo continua bastante atraente, coloca-se a literatura numa posição antagônica a da arte, que não apenas reforça valores estéticos, mas questiona a conformidade. Aparentemente, hoje há uma minimização da capacidade crítica de qualquer leitor, que consideraria o código de honra dos Três Mosqueteiros semelhante ao do Capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite.
No mundo real, o preconceito domina populações inteiras. Na minha pele (Objetiva, R$ 52) é a reflexão do ator Lázaro Ramos sobre ter a vida definida pela própria etnia. Artista festejadíssimo por seu talento, nascido e criado na Bahia, estado conhecido por sua ampla maioria de negros na população, adolescente tímido, só passou a exigir tratamento igual ao de brancos depois de entrar para o grupo de teatro do Olodum. Nas batidas policiais nos ônibus, em Salvador, “só descia negão” dos veículos. Sacando dinheiro em caixa eletrônico, à noite, ele foi interpelado por policiais armados. Explicaram que Lázaro era um tipo “meio suspeito”.
Para evitar ficar estereotipado como alívio cômico, ele sempre buscou papéis marcantes em cinema, teatro e televisão, recusando interpretar escravos ou melhor amigo de protagonista. No teatro clássico, rejeitou uma proposta de fazer “o chato do Otelo”, preferia o vilão, Iago, personagem muito mais intenso e complexo. Uma das preocupações de Lázaro foi apresentar aos filhos a literatura de Nei Lopes e Joel Rufino dos Santos, já que os escritores mais conhecidos brasileiros certamente chegarão naturalmente às crianças.
Nem todo grande homem guarda em si um caráter que beira a santidade. Ex-editor da revista Time, o norte-americano Walter Isaacson relutou bastante antes de aceitar a proposta de escrever Steve Jobs (Intrínseca, R$ 99,90), um fascinante relato sobre a trajetória do homem que tanto contribuiu para digitalizar o mundo. Em 2009, ao saber que Jobs estava com um câncer terminal, Isaacson atendeu ao convite do fundador da Apple e começou a entrevistar o biografado, seus parentes, amigos, adversários, concorrentes e colegas a fim de traçar um retrato não muito generoso sobre quem esteve em todos os movimentos de mudança na música, nos computadores, no cinema de animação, nos tablets e, principalmente, na telefonia celular.
Esquisitão, egoísta, vaidoso, obcecado, perfeccionista, cruel, controlador e workaholic são alguns dos adjetivos que poderiam descrever Steve Jobs – e Isaacson, reconhecendo que sempre se rendia ao imenso charme de seu objeto de observação, tenta comprovar todos os rótulos. Seu texto hipnotizante faz jus ao retratado, tecendo as loas devidas, sem esquecer das críticas.