Assombração é o que não falta no imaginário brasileiro. Pois a escritora Rosa Amanda Strausz dá seu toque especial a um realismo fantástico bastante nosso, tornando fantasmas, demônios e místicos personagens de seu A cabeça cortada de Dona Justa (Rocco, RS 49,90). O resultado é um romance encantador, em que diferentes protagonistas – as histórias se mesclam em épocas diversas – convivem com seres do Além, buscando jeitinhos para enfrentar maldições de acordo com o tradicional sincretismo consagrado em Pindorama, que junta santos católicos com entidades africanas e alguns conhecimentos indígenas.
Se a maior parte do enredo se desenvolve no meio rural, no interior do estado do Rio de Janeiro, o início e o fim não poderiam ser mais urbanos: o cenário é um minúsculo conjugado de Copacabana, do qual a aposentada Margô, de 71 anos, só sai para uma caminhada na praia e dar algumas braçadas no Oceano Atlântico. Ao voltar de seus exercícios, um dia, ela recebe um comunicado, de que herdara uma propriedade na região Norte Fluminense, onde há cerca de 200 anos, houve uma fazenda de café. Margô decide tomar posse de sua herança, mas é assombrada pelas muitas almas que povoam a antiga sesmaria, escravizados maltratados pelo feitor da fazenda, que tomou o terreno como seu com a morte do proprietário. A visita de Margô, sempre acompanhada por uma entidade que a princípio não se apresenta ao leitor, mas serve como guia para o passado, abre espaço para as recordações de outros tempos e das soluções sobrenaturais encontradas pelos personagens para seus destinos.
Rosa Amanda Strausz esteve envolvida por cinco anos com o texto do que viria a ser seu primeiro romance destinado ao público adulto. Autora de diversos títulos infanto-juvenis, entre ele Uallace e João Victor (FTD), que chegou a ser adaptado para a série de TV Cidade dos Homens, além de lançado na França, ganhou o Jabuti na categoria Contos, em 1991, na sua estreia na literatura por Mínimo múltiplo comum – que relançou, no ano passado, por sua própria editora, a Ventania. Dona Justa começou com um conto, que acabou sendo inserido no meio da narrativa, conta Rosa Amanda: “Eu tinha a ideia para vários contos, sem relação entre si. Um dia, descobri que um personagem queria ligar-se a outro, havia um parentesco ali. Virou romance, então”.
Ainda tem sol em Ipanema (Faria e Silva Editora, R$ 56), de Luís Pimentel, deveria vir com o aviso preso por Dante no portal do Inferno: “Deixai para trás toda a esperança, vós que entrais”. Vencedor do Prémio Ferreira de Castro de Ficção Narrativa 2021, da Câmara Municipal de Sintra, Portugal, o poético título não se cumpre, ao contrário. Os trinta contos contam a triste rotina do Rio de Janeiro, não de uma Ipanema idílica e boêmia que ficou no passado.
A tragédia do cotidiano da cidade grande está ali, na dor coletiva pela morte de Maradona que domina o noticiário num dia de sucessivas mortes em tiroteios nos bairros mais pobres, no policial que pratica extorsão contra o jovem da favela que perde o dinheiro do ingresso num baile e, assim, escapa de ser assassinado na saída, do anonimato dos que matam e também dos que morrem. Não faltam doses de humor e cinismo pincelados pelas histórias que retratam dramas sempre causados pelo crime e pela desigualdade social, desafiando qualquer imaginação artística. Crimes estúpidos, brutais, encomendados, intencionais, acidentais são apresentados com a crueza da realidade, enfrentada por milhões de pessoas que se consolam buscando o calor das praias para sobreviver mais um dia, mais uma vez. Assombrações que desafiam qualquer realismo fantástico.